quarta-feira, 28 de maio de 2008

Células-tronco: voto de Direito dá novo rumo a julgamento

Qua, 28 Mai, 01h29

Ao impor uma série de restrições para autorizar a realização de pesquisas com células-tronco, o ministro Carlos Alberto Menezes Direito, do Supremo Tribunal Federal, definiu um novo rumo para o julgamento. Os ministros Carlos Ayres Brito e Ellen Gracie votaram pela constitucionalidade da realização de pesquisa de células-tronco. Agora, os ministros terão que avaliar se aceitam a tese de Ayres Brito - que não impôs nenhuma restrição - ou a de Direito - que permite as pesquisas, mas com restrições.

Carlos Alberto Direito fez, de alguma forma, prevalecer o entendimento de que o embrião já tem vida ao autorizar as pesquisas desde que não haja uma destruição do organismo.

A outra restrição apresentada por ele também irá dificultar ou até mesmo tornar inviável, em alguns casos, a realização das pesquisas. Direito propôs que as pesquisas sejam submetidas a controle de um órgão federal que ainda não existe e que deveria ser criado por lei aprovada pelo Congresso Nacional. Com isso, alguns especialistas presentes à sessão alegam que a aprovação de um projeto de pesquisa poderia levar até três anos.

De qualquer forma, o ministro deixou claro que as pesquisas em andamento não serão afetadas por seu entendimento, caso seu voto seja acatado pelos outros ministros. O ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a sessão plenária da Corte que discute a utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas.O julgamento será retomado a partir das 14 horas.

domingo, 18 de maio de 2008

Michel Foucault

O filósofo que se atreveu a tudo

Daniel Molina

Ф El filósofo que se atrevió a todo. Publicado en Buenos Aires: Clarín, Sección “Cultura Y Nacion” en 25 de abril de 1999. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento.

Quando morreu, em 25 de junho de 1984, Michel Foucault era o pensador mais famoso do mundo. Ainda que fosse algo menos popular do que havia conseguido ser Jean-Paul Sartre depois da Segunda Guerra Mundial, desde os fins dos anos 60 sua obra ocupou o lugar central.

Michel Foucault morreu aos 57 anos: tinha aids em uma época em que a doença era rapidamente mortal. O vírus havia sido descoberto, apenas dois anos antes que o filósofo morresse, por Luc Montagnier, um pesquisador que foi discípulo do Dr. Paul Foucault, pai de Michel.

Filho, neto e bisneto de médicos, não foi fácil para Michel dizer a seu pai que não iria continuar a tradição familiar. Aos onze anos surpreendeu os mais velhos – que davam por certo que ele seria cirurgião - quando anunciou que queria ser professor de história. Apesar de tal atrevimento infantil, Foucault manteve durante toda a sua vida uma relação privilegiada com a medicina, ainda que fosse uma relação marcada por uma desconfiança essencial.

Desde muito pequeno, o filósofo conheceu o sofrimento. Sabia-se diferente e seu entorno lhe demonstrava de mil maneiras que isso não estava bem. Criado em um lar onde a forte tradição católica de linhagem paterna regia até os mínimos detalhes da vida cotidiana, membro da puritana classe média provincial das décadas de 30 e de 40, o rapazinho havia descoberto que – diferentemente do que dizia a maioria de seus companheiros – ele se sentia atraído por homens. A descoberta tornou-se uma tortura: não sabia o que fazer, a quem recorrer, como viver.

Em sua casa, as pressões para que o menino se “endireitasse” deviam ser intoleráveis. O filósofo contou, pouco antes de morrer, que quando pequeno, seu pai o levou a uma das salas de cirurgia a fim de que o pequeno “se fizesse homem”. A vida para ele se tornou uma tortura: até meados de seus vinte anos, Foucault tentou várias vezes o suicídio e sua afeição pelo álcool nasceu nesta época.

Contudo, ter sobrevivido ao escândalo de ser um adolescente homossexual em um mundo que considerava que esta orientação sexual era uma doença ou uma forma de degeneração moral, ter sido capaz de superar semelhante censura, o acostumou ao risco, o fortaleceu e o capacitou para intervir nos combates intelectuais que o esperavam, não menos ferozes que as cruéis brincadeiras e os brutais sarcasmos que teve de enfrentar em seus anos de estudante.

Foucault aprendeu desde muito cedo a enfrentar as questões desde um lugar absolutamente original. Nas disputas que a esquerda e a direita mantinham durante os quentes anos da Guerra Fria, mesmo que alinhado com a esquerda (inclusive, ingressou no Partido Comunista, seguindo seu amigo Louis Althusser), sua posição estava tão longe de ser ortodoxa que não foi estranho a ninguém que ele deixasse o comunismo tão rapidamente como havia ingressado. Nunca foi um esquerdista típico; suas posições políticas escandalizaram tanto aos conservadores quanto aos progressistas.

Brilhante em uma geração de homens brilhantes (entre muitos companheiros de estudos destacavam-se Pierre Bourdieu e Paul Vayne, entre seus amigos figuram Pierre Boulez, Roland Barthes e Gilles Deleuze), Foucault sobressaiu-se desde o começo de sua carreira universitária. Seus professores (Maurice Merleau-Ponty, Georges Dumézil, Louis Althusser, Jean Hyppolite, Georges Canguilhem) acreditavam, desde que o conheceram, que ele era “a promessa de sua geração”.

Ainda menino, estava obcecado por ocupar os primeiros lugares no estudo. Em Poitiers, somente era superado por um colega cujo nome parece uma brincadeira do destino: Pierre Rivière (mesmo nome do assassino que escreveu as famosas memórias que Foucault analisou em Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão). Uma das recordações mais amargas de sua adolescência está relacionada com a luta pela primazia na escola. O jovenzinho Michel viu chegar, de golpe - em plena invasão alemã – rapazes judeus que escapavam de Paris, então ocupada pelos nazistas. Os jovens parisienses tinham, obviamente, uma melhor formação do que os jovens de Poitiers, e por conseguinte, superaram a Michel. Ele detestou tanto esta situação que se fechou em uma fantasia que não o abandonou: nela, os parisienses “desapareciam”, eram seqüestrados e deportados de Poitiers. Esta fantasia se fez realidade rapidamente: os jovens judeus forram enviados aos campos de concentração. O adulto e iconoclasta Michel Foucault ainda sentia que tinha alguma culpa pela forma com a qual a história realizou o seu desejo.

A beatriz de Foucault foi Nietzsche. Como Beatriz guia Dante na Divina Comédia, a obra de Friedrich Nietzsche (especialmente os textos que ele escreveu quase à beira da loucura) foi para Foucault uma iluminação. Quase como nenhum dos especialistas em Nietzsche (nem mesmo pensadores tão sutis como Giorgio Colli) Foucault soube ver no autor do Nascimento da Tragédia tanto o poeta quanto o filósofo, o artista quanto o pensador. Para Foucault (como para Nietzsche) a forma, o tom poético que percorre sua escritura e o apelo ao aforismo nunca foram questões secundárias.

Nietzsche também lhe permitiu sentir-se mais seguro para elaborar seu ponto de vista singular. Como costuma acontecer com muitos jovens que se sentem incômodos em função de sua posição de estranho às normas e aos estilos que definem ao grupo que “pertence”, também para Foucault a obra de Nietzsche revelou o poder e o gozo de ser diferente. Esta obra foi o seu guia e sua sustentação; ajudou-o a compreender que ter um ponto de vista original não era um pecado pelo qual se devesse pagar caro. Há um par de aforismos nietzscheanos que o acompanharam por toda a vida quase como mantras para uma meditação pessoal. Um desses aforismos (o que, segundo o filósofo francês, marcou cada momento de sua vida) ele o parafraseava assim: “Trata-se de chegar a ser o que se verdadeiramente é”. O outro diz o seguinte: “O amor à verdade é terrível e poderoso”.

Entre as influências que o próprio Foucault considerou essenciais para sua formação se destacam Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre (com quem se enfrentou mais de uma vez e de uma maneira tão dura, que levou muito tempo para reconhecer a dívida que tinha com sua obra). Não é casual que Sartre seja dramaturgo e novelista, além de filósofo. Como Roland Barthes, Foucault apreciava sem discussão a obra literária de Sartre. Tampouco é casual que Heidegger seja um dos poucos filósofos que fundou grande parte de sua reflexão sobre a poesia, à qual considerava uma potência reveladora.

O ponto de vista original que caracteriza a indagação foucaultiana, seu olhar pouco habitual no mundo do pensamento é, contudo, freqüente no universo da literatura. Se poderia dizer que Foucault é o mais literário dos filósofos e o mais filosófico dos escritores. Muitas de suas referências “teóricas” são literárias. Não é acidental, por exemplo, que no começo de As palavras e as coisas, diga que a pesquisa deste livro que o impulsionou à fama (inclusive à popularidade) nasceu de um fragmento de um dos ensaios de Jorge Luis Borges que se encontra em Outras inquisições: “O idioma analítico de John Wilkins”. Borges (da mesma forma que seu admirado Oscar Wilde) era um mestre na difícil arte de expressar idéias extremamente complexas e perigosas mediante paradoxos brilhantes e sutilezas estilísticas.

O estilo de Foucault (mas o estilo não é secundário, “o estilo é o homem”) é literário: desde a inclusão de multinarrações que são essenciais para o desenvolvimento do argumento até o trabalho com a escritura (uma escritura que abunda em metáforas, uma escritura que apela a transformar muitas de suas frases em epigramas, quase em versos e seus parágrafos em aforismos) fazem de Foucault um escritor, antes de um pensador. O menino que decidiu ser professor de história se transformou em um dos escritores que mais profundamente refletiram sobre a história, um poeta do pensamento e um narrador teórico.

Sua tese de titulação principal (apresentou duas; a segunda intitulada L'Anthropologie de Kant – Introdução, tradução e notas – não editada) foi apresentada em 1961, por Georges Canguilhem e D. Lagache: era a História da Loucura. Apenas lançado, o livro foi saudado como uma contribuição essencial para a história das mentalidades por historiadores da estatura de Fernand Braudel. A raiz deste texto começa uma série de programas de rádio dedicados a “história da loucura e literatura” que se mantêm no ar quase um ano.

A História da Loucura o transforma em um pensador de moda no meio intelectual francês. O jornal Le monde o qualifica como um “intelectual absoluto, fora do tempo”. Neste livro fundacional, Foucault insiste em pensar a loucura em sua especificidade, não como uma essência imutável que se manteria através do tempo e as culturas (só mudariam as formas de designá-la), mas que é própria de cada momento histórico, de cada contexto cultural, social e econômico. Enquanto, mais precisamente, é definida desde o ponto de vista da ciência, a loucura se torna cada vez mais inapreensível. Contudo, seu flanco politicamente explosivo logo se porá em manifesto por meio do Maio[1] Francês, quando Foucault se relaciona com os antipsiquiatras, Ronald Laing e David Cooper e com os que criticam a reclusão em manicômio, como Basaglia.

Nos fins deste ano, Foucault termina de escrever O nascimento da clínica (livro que ele apresenta como “as sobras da História da Loucura”), que aparecerá dois anos mais tarde. A medicina – vista a partir da crítica mais virulenta contra o saber médico – segue ocupando um lugar central em seu pensamento. Diferentemente dos que criticam a medicina moderna por seus erros (pelos efeitos colaterais que têm os medicamentos ou pelos diagnósticos errados), Foucault critica a medicina em sua “essência”: o saber médico é negativo por si mesmo, sobretudo quando acerta, porque sua mecânica destrutiva – ver a doença como algo a combater – cria as condições de novas enfermidades, que serão mais difíceis de controlar.

Em 1966 aparece seu livro mais difundido, As palavras e as coisas. A conclusão do ensaio contribuiu para que a imprensa lançasse uma polêmica (que para Foucault – como para muitos outros intelectuais – é uma discussão fundamentalmente “midiática”) que ocupou durante meses as páginas dos principais jornais franceses: a muito mal entendida questão do que se chamou “a morte do homem”. Foucault, que estava interessando em desmontar o mecanismo de naturalização do pensamento (um mecanismo que faz com que se acredite que os conceitos, assim como também os problemas e as soluções científicas, são eternos – ou quase – porque o pensamento é visto como se estivesse fora da história), escreveu, como conclusão de sua investigação: “Uma coisa em todo caso é certa: é que o homem não é o mais velho e nem o mais constante problema que se tenha colocado ao saber humano (...) O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento de que podemos quando muito pressentir a possibilidade, mas de que nosso momento não conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como aconteceu, na curva do séc. XVIII, como solo do pensamento clássico – então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia”.

Nos apaixonados dias do Maio francês, o pensador se encontrava entre dois continentes (Europa e África) e, alem disso, nadando entre duas águas: poucas horas antes da sublevação estudantil Foucault é um acadêmico de prestígio, um professor querido, mas “elitista”, um homem que está discutindo com o governo o futuro da educação secundária e universitária da França. É um homem que “renegou” Marx. A maioria da esquerda o qualifica de “violentamente anticomunista”.

Realiza cursos na Tunísia ao mesmo tempo em que é nomeado professor da universidade de Nanterre, que será uma das trincheiras mais ardentes durante a revolta estudantil. Durante quase todo Maio, Foucault permanece bloqueado em Tunísia; logo pode tomar um vôo a Paris no dia 27. Chega justo para somar-se ao motim dos líderes da esquerda que se realizou no estádio Charléty. Com idas e voltas a Tunísia, Foucault participa das últimas manifestações francesas, antes que o partido de De Gaulle ganhe amplamente as eleições convocadas por Pompidou. Foucault declara que as revoltas hiperideologizadas dos estudantes franceses não lhe interessam tanto. Acrescenta que, pelo contrário, “a militância violenta, corporal e necessária” dos tunisienses o fez redescobrir a amor à militância.

Poucos dias depois de acabada a revolta, Hélène Cixous o convida para participar da criação da universidade de Vincennes. Mesmo que o tenha convocado para dirigir o projeto, Foucault só aceita ajudar a estruturar os departamentos de psicanálise (em conjunto com o lacaniano Serge Leclaire) e de filosofia (junto com Alan Badiou). Enquanto os intelectuais soviéticos - Na revista Literatounæ Gazeta – atacam duramente o “antimarxismo e anti-humanismo” de Foucault, o novo ministro da educação da França, Olivier Guichard, não o concedeu validade nacional à licenciatura outorgada por Vincennes (onde o pensador ensinava) porque “têm muitos cursos dedicados à política e ao marxismo”.

Nos começos de 1970 Foucault realizava a sua primeira viagem aos Estados Unidos. A partir dali, conquistará o mundo intelectual. Ao mesmo tempo em que chega a Berkeley, às experiências com as drogas – de maneira muito tímida – e às práticas sexuais sado-masoquistas – não tão timidamente – Foucault começa a enfocar seu trabalho sobre o problema do poder e da relação entre o saber e poder. Em resposta a um longo artigo que Althusser publicou em La Pensée, no qual os aparelhos de estado se diferencia segundo funcionem pela violência ou pela ideologia, Foucault escreve um artigo que critica esta distinção. É a origem de outro de seus livros mais difundidos: Vigiar e punir, que verá a luz cinco anos depois. Ao mesmo tempo, funda o Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), como forma de intervenção específica sobre a realidade.

É nesta época que Foucault escreve sobre as prisões. Pergunta-se por que as prisões, apesar de conter uma população minoritária, exercem tal fascinação social. Ele crê que as prisões fascinam porque permitem aos “bons, aos cidadãos irrepreensíveis”, aos que se consideram socialmente “inocentes” exercer o mal sem limites: “Todas as violências e arbitrariedades são possíveis na prisão, mesmo que a lei diga o contrário, porque a sociedade não só tolera, mas exige que o delinqüente sofra”.

Em sua aula inaugural do Collège de France, em 02 de dezembro de 1970, Foucault expõe sobre a questão do poder. Durante 13 anos, cada quarta feira, às 17:45h exporá suas pesquisas. O tema do primeiro curso, intitulado “A vontade de saber”, é a contraposição dos modelos teóricos de Aristóteles e Nietzsche. A concorrência foi tão massiva que não sabiam onde colocar tanta gente.

Foucault começa um período de abertura a todos os temas, a todas as formas de abordagem: os anos de 1970 serão de intensa aprendizagem e de elaboração apaixonada. Ao regressar de sua viagem ao Irã (ainda governado pelo sha) em 1977, dirá uma de suas frases mais difundidas e, quem sabe, menos entendidas: “Há mais idéias no mundo que as que imaginam os intelectuais”. A experiência californiana que viveu durante seus últimos dez anos de vida foi essencial. Em Berkeley ensinou (e pesquisou). Nas saunas gays de Los Angeles acedeu a práticas sado-masoquistas que, mais que subjugá-lo, o permitiram desenvolver uma reflexão original sobre o gozo por meio da dor (é o Foucault mais intenso e menos difundido nas universidades).

Apesar de que seu interesse pela sexualidade possa parecer óbvio (interesse refletido em sua última obra, os três tomos da História da sexualidade), o enfoque que Foucault dá a questão, não o é. Para o próprio filósofo, foi um problema chegar a pensar o sexual. Quando em seus anos universitários o deram como tema de investigação filosófica “a sexualidade”, Foucault se aborreceu com Canguilhem por propor “algo assim como objeto da filosofia”. Pelo contrário, depois de percorrer um longo caminho, em suas investigações dos anos 1970, ele pergunta, em primeiro lugar, por que a sexualidade é objeto de uma preocupação moral (e já a pergunta desarma a “naturalidade” da questão, já deixa de ser óbvio que o sexo é um problema moral: está claro que alguém, alguma instituição, um poder necessita que o sexo seja supervisionado pela moral).

Sua obra foi se aproximando a seu ideal de vida: chegar a ser o que verdadeiramente se é. Ao mesmo tempo em que o sério Foucault – o que havia negado a importância da vida para a obra – foi capaz de ir deixando de lado seus próprios temores e se atreveu a manifestar-se, começou a importar-lhe não só para quem fala, mas como se vive uma experiência. Isto iluminou sua obra. Sua filosofia transformou-se naquilo que Sartre desejou produzir mas não chegou a articular: uma ética. A ética de Foucault nasceu quando, em sua reflexão, encontrou-se com seus mestres: os antigos gregos. Esta intensidade final, nascida do risco, outorga a sua obra uma consistência clássica. Talvez por isso suas idéias não pareceram correr o risco de desvanecer-se como um rosto de areia na beira do mar.
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[1] Referência à revolta estudantil ocorrida em Paris em maio de 1968 (N. do T.)

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Questão da realidade

A realidade realmente existe?

Por Agência EFE


Nem as cores existem na natureza nem nossa mente reflete fielmente os que nos rodeia. A realidade é proporcional ao número de seres humanos, posto que o que cada um percebe é filtrado e deformado pelos sentidos objetivos e a mente subjetiva.

O mundo visual que nos rodeia é uma ilusão? É verdade que as cores não existem na natureza? Nosso cérebro reflete fielmente a realidade exterior? As respostas a essas perguntas demonstram que a realidade é um conceito bastante subjetivo, já que muitas das coisas que observamos não existem ou, pelo menos, não são como as enxergamos.

O coquetel de estímulos provenientes do interior e do exterior de nosso corpo e que captamos por meio dos cinco sentidos varia sutilmente de uma pessoa para outra, já que a estrutura, as diferenças e as alterações dos órgãos sensoriais de cada um fazem com que, por exemplo, vejamos e escutemos de forma diferente, tanto que não exitem duas percepções iguais do real.

Se essa percepção objetiva, por sua vez, é alterada pela interpretação subjetiva do que somos, acontece e nos rodeia, com base em nossa bagagem de aprendizados e experiências, podemos concluir que a realidade é algo tão pessoal e único como as impressões digitais.

Segundo o neurocientista Francisco J. Rubia, autor do livro "¿Qué sabes de tu cerebro?" ("O que seu cérebro sabe"), "antigamente se achava que o cérebro refletia de forma fidedigna o mundo exterior, mas, a cada dia, parece mais evidente que o cérebro é um mundo fechado que traduz os estímulos externos para a linguagem disponibilizada pelas estruturas cerebrais, dando uma versão interna ou uma representação da realidade exterior".

O mundo visual é uma ilusão?

É o que parece. As imagens, que se formam nas duas retinas dos olhos, são distorcidas, pequenas e invertidas. Além disso, o poder de resolução do olho é limitado e disforme, já que, fora do ponto de maior acuidade, é baixo e a retina é praticamente cega para as cores.

O olho, além disso, se movimenta constantemente de um ponto para outro do campo visual, de três a quatro vezes por segundo, o que faz o órgão criar um montão de novas imagens.

Por outro lado, é conhecida a importância da atenção para a percepção de qualquer sensação: por exemplo, se não temos atenção, não vemos.

Além disso, o cérebro "completa" a percepção das coisas que não são vistas, como a visão de um cachorro inteiro atrás de uma cerca, embora só vejamos partes do animal.

Mas, talvez o mais importante, seja constatar que muitas das coisas que vemos são criações do cérebro. As chamadas "ilusões óticas" são inúmeras e dizem "a gritos que o cérebro vê o que quer ver, por isso somos incapazes de captar o que costumamos chamar de 'realidade'".

As cores não existem. A natureza não tem mais que diferentes comprimentos de onda. A audição, a visão, a percepção da cor ou do som... Tudo depende do nosso cérebro e da organização espacial das estruturas que processam esses estímulos.

Além disso, o processamento cerebral das características ou propriedades dos diferentes estímulos do ambiente, como a qualidade, a intensidade, sua estrutura temporária e local de procedência, podem variar, devido às estruturas e células nervosas que os recebem e transportam.

Na visão cromática, intervêm receptores que captam os diferentes comprimentos de onda do espectro electromagnético (azul-violeta, verde, e amarelo-vermelho) e células que produzem as sensação de contraste entre as cores.

No final de todo o processo, o cérebro atribui uma determinada cor à atividade dos receptores e de todas as células que há até a informação chegar a um região denominada córtex visual. Mas um comprimento de onda não se transforma no cérebro em uma determinada cor. Não há uma correlação clara entre as duas coisas.

Presos dentro de nós mesmos

Nosso cérebro, então, reflete a realidade exterior? Para Rubia, esta pergunta tem um categórico "NÃO" como resposta.

"Existe uma realidade exterior, mas tudo o que vemos, ouvimos, cheiramos, sentimos está dentro de nós mesmos. É o próprio cérebro que está sempre falando com a gente", destaca.

Segundo o cientista, "graças às transformações que os receptores dos estímulos externos realizam, graças à tradução dos estímulos físicos para a linguagem cerebral dos impulsos nervosos, fazemos com que surja essa realidade, esse mundo que não está fora, mas dentro do cérebro".

A tradução deve ser boa, porque, caso contrário, não teríamos nos adaptado tão satisfatoriamente ao nosso entorno. Porém, estamos presos dentro do nosso cérebro, e qualquer pensamento sobre a captação da realidade é pura ilusão, diz o especialista.

Omar Segura

quinta-feira, 1 de maio de 2008

O Conceito de Amizade em Aristóteles.

Autora: Maria Regina Ponte da Silva[1]

“Depende de nós praticarmos atos nobres ou vis; e se é isso que se entende por ser bom ou mal, então depende de nós sermos virtuosos ou viciosos.”
Aristóteles.

Em seu livro Ética à Nicômaco, Aristóteles estabelece um tratado das virtudes humanas. As virtudes se dividem em intelectuais ou dianoéticas e as virtudes morais, que podem ser aprendidas através do hábito.

A razão prática ou a ética em Aristóteles possui uma finalidade imprescindível, na medida em que ela serve de fio condutor que dá acesso à Felicidade. É por isso que a Ética de Aristóteles é teleológica, ou seja, também conhecida como doutrina do eudamonismo, pois nossas atitudes devem buscar a felicidade através de ações virtuosas.

A virtude aristotélica consiste no esmero esforço do equilíbrio entre os vícios da falta e do excesso. Em posição de destaque se encontra a amizade, como virtude necessária no compartilhamento da felicidade.

A AMIZADE

A amizade é, pois uma virtude extremamente necessária à vida. Mesmo que possuamos diversos bens, riqueza, saúde, poder, ainda assim, não será suficiente para nossa realização plena, pois nos falta a essencial e indispensável amizade. Na ética aristotélica, quanto mais influência e poder manipular um homem mais necessidade ele terá de ter amigos. A justiça e a amizade possuem os mesmos fins, mas considera-se a amizade superior a justiça, pois a justiça é utilizada para contornar nossos atos em relação ao próximo que não conhecemos. Com os nossos amigos não precisamos de justiça, pois a natureza da amizade nos é completa, como mais autêntica forma de justiça.

De acordo com a proporção da faixa etária de cada indivíduo, a amizade apresentará uma função específica. Para os jovens ela ajuda a evitar o erro, para os mais velhos serve de amparo para as suas necessidades e suprime as atividades que declinam com o passar dos anos, porque dois que andam juntos são mais capazes de agir e pensar.

Sua utilidade se estende ainda mais, ela mantém cidades unidas, pois assegura a unanimidade e repele o faccionismo. Por conta disso, afirma Aristóteles:

A amizade não é apenas necessária, mas também nobre, pois louvamos os homens que amam os seus amigos e considera-se que uma das coisas mais nobres é ter muitos amigos. Ademais pensamos que a bondade e a amizade encontram-se na mesma pessoa.[2]

A condição necessária e basilar para se formar uma amizade se dá pelo conhecimento de uma a outra pessoa que desejam entre si reciprocamente o bem. Assim como a condição específica para ser objeto de amor é ter um caráter bom, agradável e útil.

Acrescenta Aristóteles que deve existir mais de uma forma de amizade, neste sentido apresenta três espécies de objetos de amor: o que é bom, ou o agradável, ou útil.

Destes três objetos nascem três espécies de amizade. Encontra-se em situação de superioridade aquela que é motivada pelo bem, pois é duradoura. Enquanto a agradável está relacionada aos jovens e a terceira parece existir principalmente entre as pessoas idosas, pois nesta idade buscam não o agradável, mas o útil. Nestes tipos de amizades as pessoas buscam seus próprios interesses para terem alguém que lhes proporcionem prazer ou alguma utilidade. Não ama o amigo por ele mesmo, mas na medida em que ele pode proporcionar algum bem, utiliza a amizade para conseguir outra coisa, de modo que o amigo é tido como um meio; não como um fim. O verdadeiro amigo quer as coisas para as pessoas a quem ele ama, o amigo por acidente as quer para si.

Segundo Aristóteles, o requisito essencial para a amizade é “a consciência, a qual só é possível se duas pessoas são agradáveis e gostem das mesmas coisas”. Entretanto, se a ausência é demorada parece provocar o esquecimento da amizade.

A amizade perfeita é aquela que existe entre homens que são bons e semelhantes na virtude, ou seja, há a reciprocidade de caráter e de objetivos, conseqüentemente portará a tendência de ser perene. Sua exigência peculiar resume-se em tempo e intimidade e a verdadeira amizade é invulnerável a calúnia.

Há uma outra espécie de amizade que envolve a desigualdade entre as partes, por exemplo, a amizade entre pai e filho, entre velho e jovem, entre marido e mulher, e em geral a amizade entre quem manda e quem obedece. Como tornar proporcional a amizade entre os desiguais?

São consideradas amizades acidentais aquelas que se fundamentam no interesse derivada do amor a utilidade e não ao outro por si mesmo, assim elas são facilmente capazes de se fragmentarem quando uma das partes cessa de ser agradável ou útil, pois existia apenas como um meio para se chegar a um fim.

Já que a igualdade é característica essencial da amizade e que ela exerce os mesmos atos também na justiça, aquele que for melhor para com o outro deverá receber mais amor, para que assim estabeleça-se a proporção.

Por outro lado, ser amado é algo bom em si mesmo, e por isso parece ser melhor ser amado que receber honras, conseqüentemente a amizade parece ser desejável por si mesma. Mas a natureza da amizade consiste muito mais em amar do que ser amado, por exemplo, o amor de uma mãe pelo seu filho. É dessa maneira que pessoas desiguais podem ser amigas, sendo possível a igualdade entre eles. Desta forma, a amizade que se forma entre contrários visa à utilidade.

Em resumo, podemos concluir a partir de Aristóteles que:

Podemos dizer que amar assemelha-se à atividade, e ser amado à passividade: amar e ter várias formas de sentimentos amistosos são atributos dos homens mais ativos.[3]

1. A amizade x benevolência

A amizade pode cessar quando a reciprocidade de interesses é desvinculada. Esses fatos ocorrem quando o amante ama o amado visando o prazer, e o amado a utilidade, e nenhum deles possuem as qualidades que deles se espera. Ou seja, nenhum deles amava o outro por si mesmo à vista que suas qualidades não eram duradouras.

Nesse sentido, os desentendimentos ocorrem quando o que as pessoas obtêm é algo diferente daquilo que desejam.

Enquanto a amizade envolve a intimidade, a benevolência pode surgir subitamente, como acontece com os adversários em uma competição. Assim, ela pode ser o início de uma amizade. , do mesmo modo que o prazer o prazer com os olhos é o início do amor. Logo, podemos se aproximam por sentir benevolência uma para com a outra, na medida em que o tempo trará a intimidade para ratificar o amor.

Assim, afirma Aristóteles:

Por uma extensão da palavra amizade, poderíamos dizer que a benevolência é a amizade inativa, não obstante, quando se prolonga e chega ao ponto da intimidade, ela passa a ser amizade verdadeira. Mas não se trata da amizade baseada na utilidade ou no prazer, pois a benevolência não se manifesta em tais condições.[4]

A reta razão

A reta razão é justamente o caráter deliberativo da alma que nos dirige as virtudes, que nada mais são que o meio-termo entre os extremos. Para explicar a natureza da reta razão, Aristóteles inicia o livro VI afirmando que a alma se divide em duas partes: uma racional e outra não racional.

A racional se divide em outras duas partes: a científica[5], que contempla as coisas imutáveis, não sendo esta objeto de deliberação: e a calculativa, que se ocupa das coisas mutáveis, sendo objeto de deliberação. A virtude da primeira será a sabedoria filosófica e a da segunda a sabedoria prática.

Dentre as três coisas que controlam a ação e a verdade na alma temos: a sensação, o pensamento e o desejo. A primeira não é princípio de qualquer ação refletida, mas o desejo está ligado à reta razão. Assim, a escolha só será boa se o desejo for guiado pelo reto raciocínio.
A razão predomina sobre o desejo:

O caráter deliberativo encontra-se na inteligência prática, pois nos responde se o nosso desejo é bom ou não. Se for bom, a escolha deverá ser feita, pois houve concordância entre a razão e o desejo (a razão aprovou o desejo). Mas quando a razão conclui que tal desejo nos prejudica, então não deveremos escolher, pois embora o tenhamos desejado, a razão o rejeitou como algo prejudicial. Nesse sentido, só será lícito conhecermos uma coisa que desejamos, depois que o raciocínio a examinar declarando-a boa.

O alcance da verdade na alma somente será encontrado através de cinco disposições: a arte (no sentido geral do conhecimento técnico), o conhecimento científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão intuitiva.

A arte, para Aristóteles, é a capacidade de produzir, utilizando um conhecimento sobre a maneira de se fazer às coisas, mas não se remete ao agir. Seria uma ciência como um conhecimento demonstrativo do necessário e do eterno, podendo ser ensinado ou demonstrado pela indução.

“O conhecimento científico é o juízo acerca das coisas universais e necessárias”.

Já a sabedoria prática ou discernimento é a capacidade deliberação, como já mencionamos anteriormente, tendo no agir a sua finalidade.

O discernimento deve ser uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir com respeito aos bens humanos. Ela é, portanto, a capacidade de pensar sobre as coisas de ordem prática, sobre a conduta do próprio homem e de agir conforme o raciocínio. Nesse sentido, o prazer e a dor podem interferir nos juízos de ordem prática.

Podemos dizer que a sabedoria filosófica é a união da inteligência e da ciência (que demonstram as coisas invariáveis) , segundo Aristóteles, ela é a mais perfeita forma de conhecimento… Enquanto a sabedoria prática se relaciona com as ações humanas, que são objetos de deliberação, às coisas particulares e variáveis que tenham uma finalidade específica dentro do mundo da ação. Portanto afirma Aristóteles:

E não é menos evidente que a escolha não será acertada sem a sabedoria prática, como também não sem a virtude, pois uma (a sabedoria prática) determina o fim e a outra nos leva a praticar ações que conduzem a esse fim[6].

Na verdade, o ideal seria possuir as duas, mas não sendo isso possível a sabedoria prática é preferível à outra, pois diz respeito à ação de nossa realidade imediata, prática indispensável ao caráter deliberativo e iminente.

CONCLUSÃO

Na verdade, não há teoria da vontade racional em Aristóteles, mas o que ele instituiu foi o conceito do desejo deliberado, ou seja, a filosofia do agir. A estreita ligação entre desejo e virtude faz com que se possa justificar uma das expressões com que se quis caracterizar globalmente a Ética Nicomaqueia: eudonismo racional.

A finalidade ultima desse eudonismo é a contemplação, Livro X. Por conta disso, não se pode conciliar plenamente a unidade da virtude com a multiplicidade das virtudes, porque cada uma é ao mesmo tempo o seu fim em si e meio para atingir a contemplação. Por outro lado, e ainda diferentemente de Platão, não se pode separar a vida ativa e a vida contemplativa. Participando do prazer eterno o filósofo, ao contemplar obedece à sua natureza racional, cumprindo, o mais completamente possível ao homem, o seu dever de ser feliz.

Mas a ética aristotélica passa ainda por outro pólo, a vida humana baseada nas relações intersubjetivas da amizade, como condição necessária e indispensável para uma vida feliz, devendo acompanhar todo o agir moral.

A importância de sua filosofia adquiriu influência no pensamento cristão. Como no caso de São Tomás de Aquino que no seu pensamento teológico, aproveita a sistematização do Estagirita. Bem como, no ocidente, do período clássico até o século XVIII e permanece até os nossos dias.

BIBLIOGRAFIA

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[1] Ms em Filosofia pela UECE (Universidade Estadual do Ceará)

[2] Aristóteles, Ética a Nicômaco, Martin Claret, p. 173

[3] . Aristóteles. Ética a Nicômaco, Martin Claret, p.206

[4]. Aristóteles. Ética a Nicômaco. Martin Claret. p.203

[5] O conhecimento científico é um juízo das coisas universais e necessárias. Aristóteles, Ética a Nicômaco, Martin Claret, p. 133

[6] Aristóteles, Ética a Nicômaco, Martin Claret, p. 144

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