quarta-feira, 25 de junho de 2008

O OCIDENTE: DA RELIGIOSIDADE AO ATEÍSMO NIILISTA

Márcio Lima*

RESUMO

O presente trabalho visa mostrar, de forma resumida, como o cristianismo e a fé religiosa, que permeava toda dimensão cultural, econômica, política e religiosa da sociedade, durante a Idade Média e parte dos séculos XVI e XVII, acabou sendo substituído pelas ciências a partir do século XVIII. Porém ao despertar para as ciências o homem moderno, em pleno século XX, percebe que a razão, a mesma que se propôs a guiar a humanidade, apresenta-se como uma série de contradições. A ciência que a priori tinha sido criada para sua proteção, agora também é utilizada como forma de aniquilação de humanos em massa – tecnologia bélica, bomba atômica, armas biológicas, etc. – Em pleno século XXI, o homem terá agora que reinventar seus próprios valores. “Deus está morto”, a ciência além de não ter nos protegido, também não trouxe explicação pra tudo… A morte de Deus representa a falta de perspectiva para criar novos valores e superar o estado niilista em que nos encontramos. Estamos sem Deus, estamos sem as ciências, estamos sozinhos.


A Idade Média foi um período histórico em que o cristianismo se tornou a crença predominante em toda Europa Ocidental.1 Em quase todo continente, a maior parte da vida social, moral e política das pessoas era determinada pelos ensinamentos e pela ação da Igreja Católica Romana.

A disseminação dos dogmas cristãos era tão intensa que no século IX, não existia na Europa Ocidental ninguém que não acreditasse em Deus. A Igreja controlava a fé, normatizava os costumes, a produção cultural, o comportamento e, sobretudo, a ordem social. Até mesmo o tempo era controlado pela religião cristã, pois, as pessoas marcavam o ritmo de suas vidas pelo toque dos sinos das igrejas. Como eram completamente voltados para as práticas religiosas, acreditavam que a vida na terra seria apenas um momento antes da eternidade, que seria vivida ao lado de Deus.

A influência da Igreja também se fazia presente nas relações políticas, onde os Papas sagravam os Reis e legitimavam o poder dos senhores feudais. Como a sociedade era constituída por pessoas iletradas e desprovidas de conhecimento, mantinha o controle do saber erudito, pois detendo informações e conhecimentos importantes, garantia de forma inabalável a extensão de seu domínio ao longo de vários séculos.

Aqueles que questionavam ou discordavam das práticas impostas pelos dogmas religiosos, eram considerados adversários da Igreja de Deus, chamados de hereges. Contra os hereges, a religião desencadeou uma guerra sem tréguas. Como forma de repressão, criou a Excomunhão e o Tribunal do Santo Ofício, conhecido como Santa Inquisição. A excomunhão era o ato que impedia o cristão receber os benefícios da salvação, concedidos por seu intermédio. Nesse caso, era preferível para muitos homens medievais, morrer a ser excomungado. A Inquisição julgava os hereges dissidentes e, os que recusavam a se retratar eram condenados à morte na fogueira.

Na Filosofia, os pensadores medievais, chamados doutores da Igreja, voltaram-se para as questões relativas aos dogmas e aos preceitos da fé, combinando por vezes elementos da filosofia greco-romana com ensinamentos cristãos. A Escolástica foi à filosofia predominante e representava uma tentativa de conciliar fé e razão à luz do pensamento aristotélico, agregando elementos da filosofia pagã com a doutrina cristã.

No campo do conhecimento científico, grande parte dos historiadores, afirmam que a Igreja pouco, ou nada, favoreceu ao seu crescimento. Aqueles que tentaram produzir um saber científico sem o aval da religião cristã foram reprimidos. Roger Bacon, monge franciscanos, foi condenado à prisão, Galileu foi reprimido e Giordano Bruno foi condenado à fogueira. (sendo os dois últimos pós-medievais)

[...] O cristianismo rompeu a união entre o homem e a natureza, entre o espírito e o mundo carnal, potencialmente distorcendo o relacionamento entre os dois em direções opostas e atormentadas: o ascetismo e o ativismo. [...] Ambrósio de Milão expressou a nova opinião oficial ao condenar como ímpias até as puramente teóricas ciências da astronomia e da geometria. [...] 2

Até meados do século XVII, a fé cristã permeava toda e qualquer parte da organização social, política e econômica da Europa e dos Países por ela colonizada.3 Porém, novos acontecimentos mudaram o rumo da história. A partir do Renascimento,4 deu-se início ao embate entre Deus, (teocentrismo) representado pela Igreja e o homem. (antropocentrismo) O mercantilismo incentivou as Grandes Navegações, onde foi percebido a possibilidade de se navegar diretamente pelos mares, já que a terra tinha a forma esférica e não plana como se acreditava na Idade Média. O Capitalismo foi tomando lugar na economia, contrariando a Igreja que condenava o lucro e a usura. A própria Reforma Protestante5 representou a possibilidade de se questionar contra os dogmas da Igreja Romana. No século XVIII, o Iluminismo,6 com suas idéias críticas e libertárias, propiciou o avanço da racionalização na sociedade. A produção cultural se deslocou do domínio da Igreja (o sagrado) para o das pessoas comuns (o profano, o leigo). Começava-se a laicização ou dessacralização, era a chamada Idade Moderna. Deus, tendo a Igreja como seu principal representante na terra, começava perder seu espaço e sua autoridade entre os homens, que pouco a pouco se desprendia da dogmática religiosa.

A Modernidade é marcada, principalmente, pela nova concepção do pensar. A rejeição de Deus, dos dogmas e instituições eclesiásticas; o individualismo; a crítica das ilusões; o desenvolvimento das técnicas e o fortalecimento do Estado democrático. A ruptura do indivíduo com o bloco sócio-religioso, aparece logo no início da modernidade, tendo conseqüências em todos os segmentos: cultura, economia, direito e política.7 Para os modernos, a vida moral deverá desprender-se da religião. A Igreja terá que renunciar ao governo e ao controle da vida política.

No pensamento moderno, Descartes rompeu com o aparato escolástico e iniciou o discurso racional. Kant, com sua visão agnóstica, afastou a fé de qualquer entendimento racional. (fé e razão atuam distintamente) Straus identificou a vida de Cristo com a Teoria do Mito, entendendo o Evangelho como algo historicamente datado, longe de qualquer caráter sobrenatural ou divino. Feuerbach assegurou ser Deus uma projeção dos desejos de perfeição do homem. Para ele, era a alienação do homem que havia criado a crença no Ser Supremo. Marx afirmou que a religião seria o ópio do povo. Darwin, com sua “Origem das Espécies”,8 abalou a teoria bíblica da criação do homem e da natureza. Por fim, Freud mostrou que as ações humanas são determinadas pelo inconsciente e que Deus seria uma projeção da imagem paterna impregnada desde cedo na mente do homem.

A modernidade destruiu toda totalidade da religião, ou seja, separado o que era revelado por Deus e codificado pela Igreja, daquilo que era percebido pelos homens e por eles transformado em teorias. A religião autorizou a Ciência, como também à Arte, à Política e, mais tarde, à Ética a adquirir sua autonomia e constituir sua própria escala de valores. Uma distinção encontrada no próprio livro sagrado cristão, (daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus) 9 divisão direta entre poder temporal e poder espiritual. A partir daí, uma nova visão vai marcar o pensamento do homem moderno. Se antes era tarefa da religião oferecer uma consciência a sociedade, agora cabia as Ciências apresentar explicações racionais para os fenômenos ocorridos no mundo (dentro e fora dele).

Essa forma de pensamento teve seu ponto culminante no século XX, quando não só a Ciência desagregou, de forma definitiva, qualquer apelo ao sobrenatural, como também, a maioria das constituições políticas que surgiram, afirmaram sua posição secular e agnóstica, separando-se das crenças. O próprio regime socialista soviético chegou a se declarar um Estado Ateu. Desta forma, mesmo que a religião ainda constitua um poderoso fator de mobilização das massas e um, insubstituível apoio ético e moral, faz-se necessário o reconhecimento de que as elites modernas deram as costas para Deus.

Diante desse contexto, e analisando de forma reflexiva a sua volta, Nietzsche (1844-1900) declarou, nas palavras do personagem Zaratustra, A morte de Deus.

Zaratustra, porém, ao ficar sozinho falou assim ao seu coração: “Será possível que este santo ancião ainda não ouviu no seu bosque que Deus já morreu?”10

A morte de Deus é a constatação do niilismo na modernidade, è a percepção cada vez maior da ausência cada vez maior de Deus no pensamento e nas práticas do Ocidente moderno. Para ele, o homem moderno perdeu a confiança em Deus e suprimiu a crença no “mundo verdadeiro”, o mundo perfeito que vem após a morte do corpo material, originário da metafísica e do cristianismo. A substituição da Teologia pela Ciência e, o ponto de vista de Deus pelo ponto de vista do homem, provocou a ruptura com os valores absolutos, com a essência e com o fundamento divino. Na verdade, a morte de Deus já se fazia presente na consciência do Europeu desde o século XIX, o que ainda não haviam percebido, era que esse fato implicava a desvalorização dos valores morais, ou seja, o fim do Deus cristão também foi o fim da moral por ele estabelecido, através do cristianismo. O culto do progresso, a proclamação da igualdade e o crescimento do conhecimento científico, transformaram a humanidade numa massa de indivíduos indefinidos ainda mais escravizados, sem força e sem autenticidade. Ao perder a legitimidade provinda de suas origens tradicionais e as suas garantias exteriores, representada pelos deuses, heróis e as monarquias de instituição divina, a sociedade moderna é condenada a tomar a si mesma como fundamento, pois não existe mais proteção divina (ela é auto-suficiente, atéia). Terá agora que reinventar seus próprios valores.

A modernidade apreende então, uma critica aos seus próprios valores. As grandes Guerras, os Estados totalitários socialistas, nazistas e fascistas, fizeram, por si só, as críticas práticas. A crítica agora não é feita apenas aos antigos valores, às hierarquias do antigo regime, a moral religiosa nem às autoridades hereditárias. A crítica visa agora os próprios valores modernos, a liberdade, a igualdade e a razão.

O século XX foi a época em que a razão se propôs a guiar a humanidade. O triunfo das ciências iluminou as zonas de incertezas e ilusão que atormentava os homens. A modernidade se apresentou como um começo absoluto de uma nova era, a instituição de um novo mundo e de novos valores edificados sobre o reino da Razão. Até que o totalitarismo desenfreado e as duas Guerras Mundiais puseram em contradição a sociedade moderna. Em 1914, a primeira Grande Guerra deu início à barbárie. As forças criadas para a organização e para a técnica, contraporam-se às forcas da razão e da ciência que outrora lhes haviam produzido. A partir deste momento, a Europa (e o Ocidente) entra em estado de convulsão. Em plena guerra, a Revolução Bolchevique assume o poder na Rússia, onde mais tarde se transformara numa ditadura socialista, influenciando também, outros países. Em 1933, o nazismo chega à Alemanha e, a partir daí, grande parte da Europa vai permanecer sob o domínio de ditaduras nazi-fascistas. Em 1936, começa a Guerra Civil espanhola que antecede a Segunda Guerra Mundial, tendo como conseqüência o holocausto de judeus. Na atualidade, o terrorismo globalizado, seguido da violência brutal contra os direitos humanos, evidencia um novo surto de barbárie.

O homem moderno agora faz pergunta tipo: Como ser um santo sem Deus? Ou como substituir Deus? Os primeiros modernistas responderam que seria através da moral da humanidade, baseada na razão. Mas, esta razão é fria, seca e individualista. Na medida em que os valores se contradizem, os fatos e a realidade demonstram inconsistência, como fugir da barbárie? A segunda fase da modernidade, iniciada com a primeira Grande Guerra, faz a humanidade tomar consciência que é frágil e de que sua salvação, encontra-se na sua própria capacidade de recriar, sem cessar, seus valores e suas instituições. Deverá o homem moderno agora, relançar permanentemente a democracia. A pergunta talvez seja a seguinte: Recriar valores e relançar democracia, baseado em que? Na fé ou na ciência? O homem moderno parece perdido, solitário e desprotegido.

[...] parece, pelo menos a esses, que um sol acaba de se pôr, que uma antiga e profunda confiança se tornou dúvida: o nosso mundo parece-lhes fatalmente todos os dias mais vesperal, mais desconfiado, mais estranho, mais ultrapassado. [...] 11

Nietzsche percebeu a humanidade em sua elevada pretensão de aumentar seu conhecimento e seu poder, sem perguntar sobre os fins (mais tarde, a bomba atômica foi o exemplo). O moderno, acreditando que tudo seria explicado, descobre que há uma falha na explicação. Agora, tudo se afunda, nada mais tem sentido. Percebe-se que nada é visado, não existe objeto futuro, instalou-se o niilismo. O homem será agora uma consciência infeliz, sabe que o mundo, tal como imaginara, não existe, e o que existe de fato, não deveria existir.

A proposta nietzscheana é a transmutação dos valores, no qual surge o (Übermensch) super-homem, aquele que através da vontade de poder, rompendo com os valores cristãos, superará o niilismo e criara novos ideais.

Eu vos apresento o super-homem! O Super-homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super-homem, o sentido da terra. 12

Para Nietzsche, o niilismo tem início ainda na antiguidade a partir da teoria socrático-platonica que inventa um mundo ideal, onde a verdade pode ser encontrada, e condena o mundo real, dito das aparências e ilusões. Esta teoria é mantida pelo cristianismo. Porém, se esse mundo em que vivemos não existe, toda filosofia desenvolvida em nome dele é um erro, o que remete ao niilismo do homem moderno. Após a morte de Deus, a interpretação moral da vida e do mundo se esfacelou, abrindo caminho para a propagação do niilismo.

A morte de Deus marca o fim da dualidade entre o sensível e o supra-sensível, o mundo que sobrou parece falso e desprovido de valor. Ao eliminar o mundo ideal, formulado pelo cristianismo, a morte de Deus elimina também o mundo real em que estamos. Como conseqüência, se o mundo verdadeiro não existe, tudo em que se acreditou até aqui, era mentira. A morte de Deus criou um vazio na modernidade. Este vazio pode ser preenchido, segundo Nietzsche, pelo super-homem, produto da manifestação de novos valores.

Noutros tempos, blasfemar contra Deus era a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e com ele morreram tais blasfêmias. Agora, o mais espantoso é blasfemar da terra, e ter em maior conta as entranhas do impenetrável do que o sentido da terra. 13

Diante dos fatos, o homem moderno se encontra cansado da vida, sua vontade deseja o nada, pois há muito, já está esgotada. A morte de Deus representa a falta de perspectiva para criar novos valores e superar o estado niilista em que se encontra. Até este acontecimento, toda moral era divina, aceitava-se e obedecia-se sem questionar, mas, e agora? A desvalorização desses valores trouxe o niilismo, a falta de sentido. Porém o niilismo possibilita também, como dizia Nietzsche, a possibilidade de criar novos valores, uma mudança na mentalidade, que só a partir daí seria possível. A questão é: qual a base para fundamentar esses novos valores, a fé representada pela religião, ou a razão representada pelas ciências? Na contemporaneidade o homem tem bastante o que refletir. Só através da reflexão analítica a razão poderá prevalecer sobre o niilismo.

Notas:

* Graduando em História e Filosofia

1. Exceto na península ibérica, ocupada pelos árabes de religião muçulmana.

2. ANDERSON, Perry. Passagem da Antiguidade ao Feudalismo, Brasiliense. p.128

3. Os países colonizados seguiam a religião oficial das Metrópoles.

4. Movimento cultural que teve início na península itálica ainda no século XIV.

5. Movimento de transformação religiosa representado inicialmente por Martinho Lutero.

6. Movimento cultural que se desenvolveu na Inglaterra, Holanda e França, nos séculos XVII e XVIII.

7. Sendo fato de objeção entre alguns pensadores contemporâneos, a total laicização do Estado.

8. Livro em que Darwin propõe a teoria de que os organismos vivos evoluem gradualmente através da selecção natural.

9. Bíblia Sagrada - Mateus 22:21

10. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, tradução Pietro Nassetti. São Paulo. Martin Claret, 2002. p.25

11. ____________________. A Gaia Ciência, tradução Jean Melville. São Paulo. Martin Claret, 2007. p. 181

12. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra, tradução Pietro Nassetti. São Paulo. Martin Claret, 2002. p.25

13. Ibidem. p. 25

Referencias:

ALMEIDA, Giuliano Cézar Mattos de. Revista Ética & Filosofia Política, Volume 8, Número 1, junho/2005.

CARVALHO, José Jackson Carneiro de. A modernidade e os caminhos da razão: ensaio de Filosofia social e política, 2ª. ed. Atual, amp. – João Pessoa: Editora Universitária / UFPB, 2006.

NIETZSCHE, Friedrich. Breviário de citações ou para conhecer Nietzsche, seleção, tradução e notas de Duda Machado. 2ª ed. São Paulo, Landy, 2001.

___________, Friedrich. A Gaia Ciência, tradução Jean Melville. São Paulo. Martin Claret, 2007.

___________, Friedrich. Assim falou Zaratustra, tradução Pietro Nassetti. São Paulo. Martin Claret, 2002.

GILGAMESH E SÍSIFO: sobre o homem e sua finitude no mundo

Ednei de Genaro

Aluno mestrando da UFSC (2008)


E no final da vida, após percorrer variadas aventuras para encontrar
a fórmula da imortalidade, Gilgamesh encontrou uma simples ‘taverneira’ que disse:

“Por que vagabundear assim, Gilgamesh? / A vida sem fim que buscas, /Nunca encontrarás! / Quando os deuses/ criaram os homens, / Eles determinaram-lhes / A morte/ E reservaram a imortalidade / Apenas a eles próprios! / Tu, de preferência, / Enche a pança, / Vive alegre, / Dia e noite, / Festeja diariamente, / Dança e diverte-se, / Dia e noite, / Veste roupas limpas. / Lava-te / Banha-se, / Olha com ternura / Teu filho que te dá a mão, / E faça a felicidade de tua mulher, / Abraça-a a ti: / Pois essa é / A única perspectiva dos homens!”

(Da “Epopéia de Gilgamesh”).


A história nos mostra que o tema do homem e seu destino no mundo foi palco das mais variadas construções mitológicas e religiosas relacionadas com o fenômeno mais singular da vida – a sua finitude. Muitas civilizações nos legaram importantes artes e ensinamentos acerca disso.

Conhecendo a história da humanidade, podemos compreender as criações dos mitos e ritos, deuses e demônios, figuras do Bem e do Mal, pelos quais o homem deu sentido à vida e às coisas. Se, ainda hoje, a questão da finitude da existência humana no Ocidente é algo visto, majoritariamente, a partir da metafísica do cristianismo, é porque a ascensão dessa religião, desde o início da Idade Média, transformou nossas formas de sentir e representar o mundo. Hoje, no Ocidente, permeia-se o imaginário das ordens não-terrenas Céu, Purgatório e Inferno e a prescrição moral que delas provêm, bem como, ele não escapa da idéia de ‘Juízo Final’, realizado por um Deus cristão.

Algo irremediável aos seres vivos, a morte sempre foi um enigma. A pergunta sobre o sentido e fim da vida; do projeto anterior e ulterior dela; ou, da existência e seu além, foi objeto de reflexão nas mais diferentes civilizações. As histórias de Gilgamesh, provinda da civilização Sumérica, e Sísifo, da grega, são dois grandes legados da Antigüidade, dois grandes enredos sobre a finitude humana.

Gilgamesh, rei dos sumérios, vivido a mais de 2000 anos a.C., foi o primeiro dos homens conhecidos a se revoltar contra o destino mais certo e aterrador do homem neste mundo: a morte. Sua “Epopéia”, de mais de 2000 versos, é uma das lendas mais antigas já escritas, contada através dos primeiros inventores da escrita, antes mesmo de Homero ter sido reconhecido como autor de “Ulisses”, por volta de 700 a.C.

Conta a lenda que Gilgamesh, homem de excepcional grandeza e força, tornou-se tirano e viveu sua vida com orgulho, sem nenhum arrependimento. Revoltando-se contra a morte, procurou a imortalidade, enfrentando a vontade dos deuses. Estes o condenaram, punindo com a criação de um sósia, Enkidu, como o inverso de sua personalidade. Ao saber disso, o grande tirano Gilgamesh foi ser amigo de Enriku. Logo, com a sedução de Gilgamesh, ambos ambicionaram abolir a lógica inevitável da morte. No entanto, a Epopéia transforma-se em uma terrível elegia. Quando Enriku é morto pelos deuses, Gilgamesh assiste a brutal cena. É surpreendido, então, pela morte fulminante de seu sósia, algo em que Gilgamesh tanto teme. Assiste a força destruidora dos movimentos e alegrias da vida; a força aniquiladora da beleza do corpo e expositora do oposto de tudo que é encantador ao homem.

Gilgamesh, triste, procurou deixar sua obsessão vaidosa contra a morte, perambulou e seguiu cumprindo suas obrigações como rei, tentado conservar sua juventude. Seu fim estava em aprender a louvar um otimismo resignado, única atitude razoável diante da ordem do mundo.

Na antiga Mesopotâmia, lugar em que viviam os suméricos, os deuses, figuras de feições humanas e imortais, eram fontes de adoração e ensinamento, tanto para serem servidos como para serem servidores. Os homens podiam, assim, desfrutar das capacidades e qualidades dos deuses. No entanto, diferentemente dos deuses, os homens eram feitos de “argilas”, perecíveis e mortais.

A questão da morte, como se sabe, não é exclusividade dos sumérios. A antiga civilização egípcia floresceu a partir de uma religião que pretendia a união e intimidade dos homens com os deuses. Os egípcios construíram grandes templos e pirâmides para venerá-los. Ostentavam um culto que permitia aos homens, após a morte, a eternidade – lugar de morada e de riquezas. Na morte dos grandes reis, realizavam-se trabalhosos embalsamento dos seus corpos, que eram adornados com grandes obras de arte. Até hoje se tem admiração por tamanha ostentação e religiosidade aos rituais funerários dessa civilização.

Os astecas, por sua vez, possuíam outra cultura peculiar em relação à morte. Povo de religião politeísta, os astecas atribuíam divindades e ritos para cada instante do tempo e momentos da vida. As suas relações com os deuses os levavam a colocar em sacrifício seu próprio povo, presenteando-os em troca de dádivas perenes da natureza. A vida para os astecas estava em poder das divindades, eram elas que ditavam e deviam ser respeitadas.

Na civilização grega, a revolta contra o destino mais certo da existência, também fez surgir uma personagem de adoração e ensinamento. O mito de Sísifo expõe a questão da finitude na condição humana na Grécia antiga. Sísifo, rei lendário de Corinto, tenta enganar os deuses para escapar da morte. Os deuses, descobrindo sua trapaça, levam Sísifo aos Infernos e condena-o a empurrar uma enorme rocha até o cume de uma montanha. Tal trabalho não se cessaria, pois cada vez que Sísifo atingisse o cume, a rocha fatalmente rolaria montanha abaixo e, inevitavelmente, o rei Sísifo voltaria a iniciar seu trabalho, sempre.

O mito de Sísifo foi eternizado na filosofia e literatura ocidental como um símbolo do verdadeiro e sincero amor do homem em relação ao mundo. Sísifo age com desprezo aos deuses, ódio à morte e paixão pela vida. Mesmo consciente da tortura que o condenaram, prefere permanecer dono de seu destino e vencer o divórcio entre o ator e o cenário desta vida, isto é, entre o homem e o mundo.

Sísifo é a expressão da vitória trágica do homem sobre o seu destino. É condecorado como um mito mortal, sábio e prudente, uma vez que sua morte depende da sua própria vontade. O francês Albert Camus, vivido no século XX, escritor de obras literárias e ensaios filosóficos, é possivelmente o maior interpretador da história do mito de Sísifo. Dedicou-se e intitulou seu ensaio mais importante ao mito – “O Mito de Sísifo”[1]. Na verdade, toda a sua vida e pensamento se traduziram em uma latente e declarada atitude de pensar a existência.

Foi com grande agnosticismo que Camus viveu e pensou sobre o sentido da vida. Sua obra é diretamente marcada pela atribuição da existência como desvinculada da idéia de interação com um mundo físico passível de ser inteligível. ‘A vida seria um absurdo?’ ‘Qual o trabalho útil da vida?’. Estas são questões fundamentais para ele.

Camus pôde recuperar o que ele acreditou ser fundamental no mito de Sísifo: o tema da antinomia e da angústia com que o homem se relaciona com um mundo em que ele tem que ‘abandonar’. Sísifo nos mostra a impotência do homem frente ao seu destino no mundo. Como pensador e artista, Camus expressou esse questionamento. Com uma carga estética admirável, ele interpretou seu tempo e construiu um modo de vida próprio, no qual rompia com tradições.

“O mundo só tem sentido porque o damos”, escreve Camus, no referido ensaio. Sísifo é feliz realizando sua vida, do mesmo modo com que um homem não abdica do sentimento de felicidade quando escreve um romance, mesmo não tendo, aparentemente, sentido algum para tal feito.

Diante das circunstâncias arbitrárias da vida e da eterna indiferença do mundo, Camus formula uma intuição básica: a absurdidade da vida. A frase de Nietzsche, “O que importa não é a vida, é a eterna vivacidade”, é bastante reveladora para o sentido da vida que Camus procura para si mesmo. Para ele, os sentimentos de revolta, liberdade e paixão que encontramos em Sísifo evidenciam as reações mais íntimas e positivas que o homem expõe diante da irracionalidade da vida.

Para Camus, a resposta para a pergunta que aterrou Shakespeare, na célebre peça “Hamlet”, vem por meio do caminho da paixão. Por meio da interpretação do mito, ele intensifica a idéia de que se torna necessário, simplesmente, ‘continuar experimentando a existência’. A paixão à vida, satisfaz sua estética da existência.

No século XIX, Flaubert, em seu romance “Madame Bovary”, construiu uma personagem libertária e libertina, que luta para encontrar uma justificação a uma vida verdadeira e sincera. Podemos observar Bovary como um grande exemplo de ‘caminho de paixão’ pela existência, de que nos fala Camus. Condenada a ter o submisso papel de mulher na moral de seu tempo, Bovary se revolta e busca sua autenticidade e vivacidade diante do mundo. Flaubert acentuou, na jovem, a difícil relação entre uma vida prenhe de energia e ‘fora de tudo’ do que a moralidade da época lhe permite. No fim de grandes conquista por sua liberdade, Bovary encontra-se diante de um dilema. Terá que escolher entre abdicar de todas as suas transgressões morais ou suportar a perda de sua autenticidade e vivacidade para continuar viva.

A resposta de Bovary é o seu suicídio que, paradoxalmente, demonstra tanto seu fiel amor à verdadeira vida com a decisão de morrer.

Em Camus e Flaubert temos, pois, uma grande expressão moderna sobre o tema do homem e sua finitude no mundo. A relação entre a busca de uma plena existência, no mundo moderno, levou a novas reflexões na filosofia e literatura. Em nossa época, as mitologias e religiões dos povos, tiveram grandes repercussões nas reflexões de grandes filósofos. O pensamento no século XX foi marcado por uma forte abertura fenomenológica para o entendimento da existência e a sua essência última. Esta abertura trouxe consigo a disposição do pensamento à questão da angústia humana perante a brevidade da vida. O pensamento ousou, assim, aproximar-se do insuperável confronto entre uma ‘irracionalidade natural’, que nos encobre, e um desejo humano por clareza, que brota da interioridade obstinada do homem.

Seja para a redenção ou salvação, e a exemplo de Sísifo e Gilgamesh, o homem propõe-se a enfrentar o princípio hostil da morte que, mesmo com ilusões criadas, ele não consegue dissimular. Aqui, além de Albert Camus, pensadores como Kierkegaard, Schopenhaeur, Heidegger e Sartre também preconizaram, na filosofia contemporânea, esta abertura para a contemplação sobre o ser-no-mundo e sua a dimensão temporal. Mas, infelizmente, já nos cabe finalizar este ensaio. Aliás, como diria Camus, “(…) a vida é pequena para quem tanto pensa… O tempo é curto, a alma estarrece e o absurdo se evidencia”.


[1] CAMUS, Albert, 2004, “O Mito de Sísifo”. Rio de Janeiro: Record.

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