terça-feira, 30 de setembro de 2008

Que é isso, a Filosofia?, de Martin Heidegger - Resenha

“Com esta questão tocamos um tema muito vasto. Por ser vasto, permanece indeterminado. Por ser indeterminado, podemos tratá-lo sob os mais diferentes pontos de vista e sempre atingiremos algo certo. Entretanto, pelo fato de, na abordagem deste tema tão amplo, se interpenetrarem todas as opiniões, corremos o risco de nosso diálogo perder a devida concentração. Por isso devemos tentar determinar mais exatamente a questão. Desta maneira, levaremos o diálogo para uma direção segura. Procedendo assim, o diálogo é conduzido a um caminho. Digo: a um caminho. Assim concedemos que este não é o único caminho. Deve ficar mesmo em aberto se o caminho para o qual desejaria chamar a atenção, no que segue, é na verdade um caminho que nos permite levantar a questão e respondê-la”. Assim enceta Heidegger suas elucubrações sobre o tema: que é isso, a Filosofia? Essas são suas palavras iniciais, literalmente aqui replicadas porque se mostram fundamentais para se captar a pretensão do autor, ou seja, indicar um caminho de abordagem ao tema do que vem a ser a Filosofia. O autor prossegue questionando a própria suposição se seremos capazes de encontrar um caminho para responder à questão, porque no momento em que perguntamos: Que é isto — a filosofia?, falamos, obviamente, sobre a filosofia e, perguntando desta maneira, localizamo-nos num ponto acima da filosofia, e isto quer dizer, fora dela. Porém, a meta de nossa questão é penetrar na filosofia, submeter nosso comportamento às suas leis, quer dizer, ‘filosofar’. O caminho de nossa discussão deve ter por isso não apenas uma direção bem clara, mas esta direção deve, ao mesmo tempo, oferecer-nos também a garantia de que nos movemos no âmbito da filosofia, e não fora e em torno dela. Na tentativa de delimitar seu objeto de estudo, prossegue Heidegger defendendo que a Filosofia não é apenas algo que pertence ao âmbito da racionalidade, mas que é a própria guarda da razão. Observa, todavia, que afirmar que a Filosofia é a guarda da razão não nos leva muito longe, porque nos cabe agora responder: que é isso, a razão? Onde e por quem foi decidido o que é a razão? Se aquilo que se apresenta como ratio foi primeiramente e apenas fixado pela filosofia e na marcha de sua história, então não é de bom alvitre tratar a priori a filosofia como negócio da ratio. Todavia, tão logo pomos em suspeição a caracterização da filosofia como um comportamento racional, torna-se, da mesma maneira, também duvidoso se a filosofia pertence à esfera do irracional. É relevante observar um ponto: se, por um lado, é problemático tomarmos a filosofia como algo racional a priori, determiná-la como algo irracional é, novamente, tomar o racional como padrão e pressupor como óbvio o que seja a razão. Se, por outro lado, apontamos para a possibilidade de que aquilo a que a filosofia se refere concerne a nós homens em nosso ser e nos toca, então pode ser que esta maneira de ser afetado não tenha absolutamente nada a ver com aquilo que comumente se designa como afetos e sentimentos, em resumo, o irracional. O autor conclui que do que foi dito até então, deduzimos inicialmente apenas isto: é necessário maior cuidado se ousamos inaugurar um encontro com o título: Que é isto — A Filosofia? Ele escolhe partir da origem grega do termo, não por motivo vão, mas porque, segundo ele, essa origem nos traz peculiaridades absolutamente relevantes e reveladoras: A palavra philosophía diz-nos que a filosofia é algo que, pela primeira vez, e antes de tudo, vinca a existência do mundo grego. Não só isto — a philosophía determina também a linha mestra de nossa história ocidental-européia. A batida expressão “filosofia ocidental-européia” é, na verdade, uma tautologia. Por quê? Porque a "filosofia" é grega em sua essência — e grego aqui significa: a filosofia é nas origens de sua essência de tal natureza que ela primeiro se apoderou do mundo grego e só dele, usando-o para se desenvolver. A frase: a filosofia é grega em sua essência, não diz outra coisa que: o Ocidente e a Europa, e somente eles, são, na marcha mais íntima de sua história, originariamente “filosóficos”. Isto é atestado pelo surto e domínio das ciências. Pelo fato de elas brotarem da marcha mais íntima da história ocidental-européia, o que vale dizer do processo da filosofia, são elas capazes de marcar hoje, com seu cunho específico, a história da humanidade pelo orbe terrestre. A tradição designada pelo nome grego philosophía, tradição nomeada pela palavra historial philosophía, mostra-nos a direção de um caminho. Ela não nos entrega à prisão do passado e irrevogável. Transmitir, delivrer é um libertar para a liberdade do diálogo com o que foi e continua sendo. Se estivermos verdadeiramente atentos à palavra e meditarmos o que ouvimos, o nome “filosofia” nos convoca para penetrarmos na história da origem grega da filosofia. A palavra philosophía está, de certa maneira, na certidão de nascimento de nossa própria história; podemos mesmo dizer: ela está na certidão de nascimento da atual época da história universal que se chama era atômica. Por isso somente podemos levantar a questão: Que é isto — a filosofia?, se começamos um diálogo com o pensamento do mundo grego. Porém, não apenas aquilo que está em questão, a filosofia, é grego em sua origem, mas também a maneira como perguntamos, mesmo a nossa maneira atual de questionar ainda é grega. Perguntamos: que é isto...? Em grego isto é: ti estin. A questão relativa ao que algo seja permanece, todavia, multívoca. Podemos perguntar, por exemplo: que é aquilo lá longe? Obtemos então a resposta: uma árvore. A resposta consiste em darmos o nome a uma coisa que não conhecemos exatamente. Podemos, entretanto, questionar mais: que é aquilo que designamos “árvore"? Com a questão agora posta avançamos para a proximidade do ti estin grego. É aquela forma de questionar desenvolvida por Sócrates, Platão e Aristóteles. Estes perguntam, por exemplo: Que é isto — o belo? Que é isto — o conhecimento? Que é isto — a natureza? Que é isto — o movimento? Agora, porém, devemos prestar atenção para o fato de que nas questões acima não se procura apenas uma delimitação mais exata do que é natureza, movimento, beleza; mas é preciso cuidar para que ao mesmo tempo se dê uma explicação sobre o que significa o “que”, em que sentido se deve compreender o ti. Aquilo que o ‘que’ significa se designa o quid est, tò quid: a quidditas, a qüididade. Entretanto, a quidditas se determina diversamente nas diversas épocas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Platão é uma interpretação característica daquilo que quer dizer o ti. Ele significa precisamente a idéia. O fato de nós, quando perguntamos pelo ti, pelo quid, nos referimos à “idéia” não é absolutamente evidente. Aristóteles dá uma outra explicação do ti que Platão. Outra ainda dá Kant e também Hegel explica o tí de modo diferente. Sempre se deve determinar novamente aquilo que é questionado através do fio condutor que representa o ti, o quid, o “que”. Em todo caso: quando, referindo-nos à filosofia, perguntamos: que é isto?, levantamos uma questão originariamente grega. Notemos bem: tanto o tema de nossa interrogação: “a filosofia”, como o modo como perguntamos: “que é isto...?” — ambos permanecem gregos em sua proveniência. Nós mesmos fazemos parte desta origem, mesmo então quando nem chegamos a dizer a palavra “filosofia”. Somos propriamente chamados de volta para esta origem, reclamados para ela e por ela, tão logo pronunciemos a pergunta: Que é isto — a filosofia? não apenas em seu sentido literal, mas meditando seu sentido profundo. Se penetrarmos no sentido pleno e originário da questão: Que é isto — a filosofia? então nosso questionar encontrou, em sua proveniência historial, uma direção para nosso futuro historial. Encontramos um caminho. A questão mesma é um caminho. Ele conduz da existência própria ao mundo grego até nós, quando não para além de nós mesmos. Estamos — se perseverarmos na questão — a caminho, num caminho claramente orientado. Já desde há muito tempo costuma-se caracterizar a pergunta pelo que algo é, como a questão da essência. A questão da essência torna-se mais viva quando aquilo por cuja essência se interroga, se obscurece e confunde, quando ao mesmo tempo a relação do homem para com o que é questionado se mostra vacilante e abalada. A questão de nosso encontro refere-se à essência da filosofia. Ela procura o que é o ente enquanto é. A filosofia está a caminho do ser do ente, quer dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do ser. E por isso que a filosofia é epistéme theoretiké. Mas que é isto que ela perscruta? Aristóteles di-lo, fazendo referência às pròtai arkhai kai aitíai. Costuma-se traduzir: “as primeiras razões e causas” — a saber, do ente. As primeiras razões e causas constituem assim o ser do ente. Após dois milênios e meio me parece que teria chegado o tempo de considerar o que afinal tem o ser do ente a ver com coisas tais como “razão” e “causa”. Em que sentido é pensado o ser para que coisas tais como “razão” e “causa” sejam apropriadas para caracterizarem e assumirem o sendo-ser do ente? A citada afirmação de Aristóteles diz-nos para onde está a caminho aquilo que se chama, desde Platão, “filosofia”. A afirmação nos informa sobre isto que é — a filosofia. A filosofia é uma espécie de competência capaz de perscrutar o ente, a saber, sob o ponto de vista do que ele é, enquanto é ente. Mas a afirmação de Aristóteles sobre o que é a filosofia não pode ser absolutamente a única resposta à nossa questão. No melhor dos casos, é ela uma resposta entre muitas outras. Com o auxilio da caracterização aristotélica de filosofia pode-se evidentemente representar e explicar tanto o pensamento antes de Aristóteles e Platão quanto a filosofia posterior a Aristóteles. Entretanto, facilmente se pode apontar para o fato de que a filosofia mesma, e a maneira como ela concebe sua essência, passou por várias transformações nos dois milênios que seguiram o Estagirita. Quem ousaria negá-lo? Mas não podemos passar por alto o fato de a filosofia de Aristóteles e Nietzsche permanecer a mesma, precisamente na base destas transformações e através delas. Pois as transformações são a garantia para o parentesco no mesmo. De nenhum modo afirmamos com isto que a definição aristotélica de filosofia tenha valor absoluto. Pois ela é já em meio à história do pensamento grego uma determinada explicação daquele pensamento e do que lhe foi dado como tarefa. A definição aristotélica de filosofia certamente é livre continuação da aurora do pensamento e seu encerramento. Digo livre continuação porque de maneira alguma pode ser demonstrado que as filosofias tomadas isoladamente e as épocas da filosofia brotam uma das outras no sentido da necessidade de um processo dialético. Do que foi dito, que resulta para nossa tentativa de, num encontro, tratarmos a questão: Que é isto — a filosofia? Primeiramente um ponto: não podemos ater-nos apenas à definição de Aristóteles. Disto deduzimos o outro ponto: devemos ocupar-nos das primeiras e posteriores definições de filosofia. A resposta somente pode ser uma resposta filosofante, uma resposta que enquanto resposta filosofa por ela mesma. Quando é que a resposta à questão: Que é isto — a filosofia? é uma resposta filosofante? Quando filosofamos nós? Manifestamente apenas então - quando entramos em diálogo com os filósofos. Disto faz parte que discutamos com eles aquilo de que falam. Este debate em comum sobre aquilo que sempre de novo, enquanto o mesmo, é tarefa específica dos filósofos, é o falar, o légein no sentido do dialégesthai, o falar como diálogo. Se e quando o diálogo é necessariamente uma dialética, isto deixamos em aberto. Supondo, portanto, que os filósofos são interpelados pelo ser do ente para que digam o que o ente é, enquanto é, então também nosso diálogo com os filósofos deve ser interpelado pelo ser do ente. O ente enquanto tal dis-põe de tal maneira o falar que o dizer se harmoniza (accorder) com o ser do ente. Para Platão e Aristóteles, o espanto é a dis-posição (1) na qual e para a qual o ser do ente se abre, o espanto é a dis-posição em meio à qual estava garantida para os filósofos gregos a correspondência ao ser do ente. De bem outra espécie é aquela dis-posição que levou o pensamento a colocar a questão tradicional do que seja o ente enquanto é, de um modo novo, e a começar assim uma nova época da filosofia. Descartes, em suas meditações, não pergunta apenas e em primeiro lugar ti tò ón — que é o ente, enquanto é? Descartes pergunta: qual é aquele ente que no sentido do ens certum é o ente verdadeiro? Para Descartes, entretanto, se transformou a essência da certitudo. Para Descartes, aquilo que verdadeiramente é se mede de uma outra maneira. Para ele a dúvida se torna aquela dis-posição em que vibra o acordo com o ens certum, o ente que é com toda certeza. A certitudo torna-se aquela fixação do ens qua ens, que resulta da indubitabilidade do cogito (ergo) sum para o ego do homem. Assim, o ego se transforma no sub-iectum por excelência, e, desta maneira, a essência do homem penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido da egoidade. Do acordo com esta certitudo recebe o dizer de Descartes a determinação de um clare et distincte percipere. A dis-posição afetiva da dúvida é o positivo acordo com a certeza. Daí em diante a certeza se torna a medida determinante da verdade. A dis-posição afetiva da confiança na absoluta certeza do conhecimento a cada momento acessível permanece o páthos e com isso a arkhé da filosofia moderna. Mas em que consiste o télos, a consumação da filosofia moderna, caso disto nos seja permitido falar? É este termo determinado por uma outra dis-posição? Onde devemos nós procurar a consumação da filosofia moderna? Em Hegel ou apenas na filosofia dos últimos anos de Schelling? E que acontece com Marx e Nietzsche? Já se movimentam eles fora da órbita da filosofia moderna? Se não, como determinar seu lugar? Parece até que levantamos apenas questões históricas. Mas na verdade meditamos o destino essencial da filosofia. Procuramos pôr-nos à escuta da voz do ser. Qual a dis-posição em que ela mergulha o pensamento atual? Uma resposta unívoca a esta pergunta é praticamente impossível. Provavelmente impera uma dis-posição afetiva fundamental. Ela, porém, permanece oculta para nós. Isto seria um sinal para o fato de que nosso pensamento atual ainda não encontrou seu claro caminho. O que encontramos são apenas dis-posições do pensamento de diversas tonalidades. Dúvida e desespero de um lado e cega prossessão por princípios, não submetidos a exame, de outro, se confrontam. Medo e angústia misturam-se com esperança e confiança. Muitas vezes e quase por toda parte reina a idéia de que o pensamento que se guia pelo modelo da representação e cálculo puramente lógicos é absolutamente livre de qualquer dis-posição. Mas também a frieza do cálculo, também a sobriedade prosaica da planificação são sinais de um tipo de dis-posição. Não apenas isto; mesmo a razão que se mantém livre de toda influência das paixões é, enquanto razão, pré-dis-posta para a confiança na evidência lógico-matemática de seus princípios e regras. (2) A correspondência propriamente assumida e em processo de desenvolvimento, que corresponde ao apelo do ser do ente, é a filosofia. Que é isto — a filosofia? somente aprendemos a conhecer e a saber quando experimentamos de que modo a filosofia é. Ela é ao modo da correspondência que se harmoniza e põe de acordo com a voz do ser do ente. Este co-responder é um falar. Está a serviço da linguagem. O que isto significa é de difícil compreensão para nós hoje, pois nossa representação comum da linguagem passou por um estranho processo de transformações. Como conseqüência disso a linguagem aparece como um instrumento de expressão. (3) De acordo com isso, tem-se por mais acertado dizer que a linguagem está a serviço do pensamento em vez de: o pensamento como correspondência está a serviço da linguagem. Mas, antes de tudo, a representação atual da linguagem está tão longe quanto possível da experiência grega da linguagem. Aos gregos se manifesta a essência da linguagem como lógos. Mas o que significa lógos e légein? Apenas hoje começamos lentamente, através de múltiplas interpretações do lógos, a descerrar para nossos olhos o véu sobre sua originária essência grega. Entretanto, nós não somos capazes nem de um dia regressar a esta essência da linguagem, nem de simplesmente assumi-la como herança. Pelo contrário, devemos entrar em diálogo com a experiência grega da linguagem como lógos. Por quê? Porque nós, sem uma suficiente reflexão sobre a linguagem, jamais sabemos verdadeiramente o que é a filosofia como a co-respondência acima assinalada, o que ela é como uma privilegiada maneira de dizer. Agora, porém, haveria boas razões para exigir que nosso encontro se limitasse à questão que trata da filosofia. Esta restrição seria só então possível e até necessária, se do diálogo resultasse que a filosofia não é aquilo que aqui lhe atribuímos: uma correspondência, que manifesta na linguagem o apelo do ser do ente. Com outras palavras: nosso encontro não se propõe a tarefa de desenvolver um programa fixo. Mas ele quisera ser um esforço de preparar todos os participantes para um recolhimento em que sejamos interpelados por aquilo que designamos o ser do ente. Nomeando isto, pensamos no que já Aristóteles diz: Tò òn légetai pollakhõs. “O sendo-ser torna-se, de múltiplos modos, fenômeno”. NOTAS 1. Dis-posição (Stimmung) é um originário modo de ser do ser-aí, vinculado ao sentimento de situação (Befindlichkeit) que acompanha a derelicção (Geworfenheift). Pela dis-posição (que nada tem a ver com tonalidades psicológicas) o ser-no-mundo é radicalmente aberto. Esta abertura antecede o conhecer e o querer e é condição de possibilidade de qualquer orientar-se para próprio da intencionalidade (veja -se Ser e Tempo, § 29). Jogando com a riqueza semântica das derivações de Stimmung: bestimmt, gestimmt, abstirnmen, Ges!imnitheit, Bestimmtheit, Heidegger procura tornar claro como esta disposição é uma abertura que determina a correspondência ao ser, na medida em que é instaurada pela voz (Stimme) do ser. O filósofo toca aqui nas raízes do comportamento filosófico, da atitude originalmente do filosofar. (N. do T.). 2. Já em Ser e Tempo (§ 29) se alude à dis-posição que acompanha a teoria e se afirma que “o conhecimento ávido por determinações lógicas se enraíza ontológica e existencialmente no sentido de situação, característico do ser-no-mundo (p. 138). Apontando para o fato de que a própria razão está pre-dis-posta para confiar na evidência lógico-matemática de seus princípios e regras, Heidegger fere um tabu que os sucessos da técnica ainda mais sacralizam. Mas, desde que Habermas, em seu livro Conhecimento e Interesse (Ed. Shurkamp, Frankfurt a. M. 1968), mostrou que atrás de todo conhecimento existe o interesse que o dirige, que a teoria quanto mais pura se quer mais se ideologiza, pode-se descobrir, nas afirmações de Heidegger, uma antecipação das razões ontológico-existenciais da mistura do conhecimento e interesse. Não há conhecimento imune ao processo de ideologização; dele não escapa nem mesmo o conhecimento científico, por mais exato, rigoroso e neutro que se proclame. (N. do T.). 3. A crítica da instrumentalização da linguagem visa a proteger o sentido, a dimensão conotadora e simbólica, contra a redução da linguagem ao nível da denotação, do simplesmente operativo. Não se trata apenas de salvar a mensagem lingüística da ameaça da pura semioticidade. O filósofo descobre na linguagem o poder do lógos, do dizer como processo apofântico; entrevê na linguagem a casa do ser, onde o homem mora nas raízes do humano. Em Heidegger, uma ontologia já impossível é substituída pela critica da linguagem, numa antecipação da moderna analítica da linguagem. (N. do T.).
Utilizada a Versão eletrônica do livro “Que é isto – A Filosofia? (Qu’est-ce que la Philosophie?)”. Tradução e notas: Ernildo Stein Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia) Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Crítica a Maquiavel

Ernani Fernandes

Prefácio
Para que se dê início a explanação quanto a divergências do pensamento maquiaveliano, deve ser feita a ressalva de que, para uma crítica com mais propriedade e livre de posições que podem aparentar irreflexão, dado o foco crítico restrito a capítulos recomendados, seria necessária a releitura da obra integral, além de uma contextualização com informações de obras que já demonstram ser lugar-comum no pensamento acadêmico contemporâneo.
A superficialidade do texto decorre, obviamente, do caráter de resenha, dispensando maiores esclarecimentos.
Crítica a Maquiavel
Nos capítulos recomendados, o autor foca modos de obtenção de poder, como a ascensão por apoio popular ou manipulação pelos grandes, apresentando o contínuo conflito entre a busca de liberdade pelo povo e a vontade de poder (em moldes nietzscheanos) da aristocracia ou oligarquia dominante.
Estabelecem-se vantagens de cada método, de modo que a vantagem da ascensão com apoio popular decorre da estabilidade e poder decorrente da possibilidade de uso do povo como massa de manobra, apresentando-se como um líder carismático pela coragem ou conveniência temporal – mesmo que efêmera – de seu controle para a obtenção de privilégios de classe ou amálgamas familiares, com a ideologia como instrumento de domínio e legitimação racional (em coerência com a moral vigente, por exemplo), mesmo que falha e parcial.
Os grandes manipuladores de massa fazem uso, comumente, da necessidade individual de um caminho ou guia (em que convém a frase de Friedrich Nietzsche, filósofo alemão: “Agrada aos homens quando lhes é afirmado qual é o caminho a seguir, não só pelas vantagens primárias e particulares dele, mas por quererem acreditar que existe um caminho”), ou seja, um auto-engano para a supressão do provável niilismo ou desespero parcial advindo de uma postura apolínea, ou seja, orientada de modo “estritamente” racional.
Destaca-se, nessa análise, Elias Canetti e sua obra magna, Massa e Poder, a qual lhe garantiu o Nobel de Literatura em 1981, que expõe, entre outros, o quase ilimitado poder social, político e mesmo econômico daquele que figura como arquétipo unificador de uma malta ou massa, em especial pela tendência generalizada entre indivíduos de todas as classes a agir de forma irracional, imprudente e mesmo pueril, quando constituintes físicos de um agrupamento coletivo denso, mas não necessariamente coeso (vide histórico massacre de peregrinos palestinos, citado pelo mesmo autor). O autor estabelece os diferentes tipos de formação de massa, os símbolos de massa de nações (elementos definidores de coesão e coerência nas ações regidas pelo Estado), meios de formação e outras particularidades, com a apresentação de diversos exemplos, com destaque para o jivaros, ingleses e alemães.
Sigmund Freud, apesar de divergir de Canetti por seu foco no eu e não na autonomia conotativamente química apresentada pelo segundo, em seu ensaio A Psicologia das Massas e a Análise do Ego também sustenta a vulnerabilidade do indivíduo a hostilidades e avalanches sociais, apresentando-se, desse modo, submisso a imposições exteriores, o que contribuiria para a unificação de corpos massificados, dada a generalização dessa condição. Desse modo, aquele que preenche o nicho de liderança de cada grupo gozaria de significativo poder.
Desse modo, conclui-se que, para a fortuna do príncipe, a massa deve ser não só dominada moralmente (e mesmo emocionalmente), mas deve ser posta em situação de constante dependência, de modo que o governante poderá agir segundo o necessário interesse de outrem, sendo soberano e insubmisso à improvável “boa vontade” de terceiros.
Afigura-se, também, necessário o domínio e desenvolvimento do aparato estatal, incluindo a concessão de benefícios suficientes para a formação de lealdade (salários elevados a guerreiros e magistrados, assistencialismo a classes baixas, o que encontra paralelo no assistencialismo dos séculos XX e mesmo XXI, como o lulismo e o chavismo bolivariano), seja essa pragmática ou emocional, considerando, obviamente, o caráter pusilânime do que se submete à pura compaixão alheia.
Ao comentar as atitudes do príncipe e a dicotomia dos que se obrigam ou não à sua fortuna, pode ser notada uma possível ingenuidade categórica por parte do escritor, visto que o submeter-se (ou aparentar submissão) de forma efêmera e freqüentemente superficial à sorte do príncipe pode figurar como dissimulação para posterior ataque, fato a que o autor, ironicamente, não aplicou o seu arquétipo da raposa e sua dissimulação.
Maquiavel discorre de forma clara sobre a criação do carisma, mesmo que de forma efêmera, focando a configuração das atitudes e meios para a criação de um personagem social conveniente às suas ambições. Retorna à dicotomia, tão cara ao autor, agora para a divisão de dois temores: os de ordem interna e externa, analisando, em outros pontos da obra, pontos em que os dois se fundem.
Retomando a discussão quanto à importância de agradar a plebe, explana o escudo humano que se forma em torno do príncipe por ela legitimado, de modo a proteger interesses particulares ou coletivos, o que pode ser invertido pela manipulação ideológica dos valores sociais e atitudes do governo, pela sedução, baseada no pragmatismo (em especial o econômico) humano, com a oferta de espólios e regalias à classe ou malta coesa de cujo poder busca servir-se.
Nota-se, em especial pelos exemplos de manifestações populares, como o caso dos Bentivoglio e Caneschi, a influência da moral judaico-cristã no pensamento pessoal maquiavélico, admitindo-se duas interpretações: resquício de idealismo platônico por parte do autor, considerando que os homens agiriam simplesmente pela moral e busca do Bem, ou o mais provável, a sua constatação da importância dada pelo homem medieval e mesmo cinquecentista à moral enquanto manifestação, respectivamente religiosa ou social, enquanto meio de coesão de massa ou manutenção do status quo (sendo este de interesse da classe dominante, amalgamada ao poder clerical). Assim, subentende-se uma demonstração sociológica: os magistrados e senhores priorizam a manifestação social moral, usando-se, quando necessário, das armas, como meio de demonstrar politicamente sua conotação religiosa, evitando incoerências que poderiam implicar instabilidade e sensíveis animosidades.
Podem ser, também, expostas outras raízes para a atitude moral refletida pela sociedade de sua contemporaneidade, como a crença real em danação eterna aos pecadores e imorais; mimetismo social e ausência de questionamento de valores herdados, por mais que estejam contra a vontades ou instintos; transvaloração da vontade de poder nietzscheana, de modo patológico, com provável origem em fraqueza interior de personalidade, surgimento de compaixão ou ambição de modo idealista, nascida, provavelmente, em valores arraigados em período anterior à formação da personalidade ou em momentos de extremo irracionalismo, comumente oriundo de desespero, ou em pragmatismos metafísicos, como a busca de eternidade, paraísos, ou luxúria e satisfação como modos de satisfação ou sublimação metafísica de recalcamentos freudianos (vide caso islâmico), entre outros.
Sendo assim, o príncipe deveria estar em consonância com as aspirações morais, econômicas, sociais e mesmo metafísicas das classes detentoras do poder na base de sustentação estatal, sob a pena de pagar com instabilidade e hostilidades por atos levianos ou irrefletidos.
Nicolau apresenta, também, métodos de estabilização por respeito social e “regras de conduta” e formação da honra e reputação, apresentados de forma literária, posteriormente, por Fedor Dostoievski, em Memórias da Casa dos Mortos, demonstra o fato de que os homens, em geral, habituam-se a tudo, até o cume em que é retirada a sua dignidade e o fato de que os subordinados prestam maior respeito ao superior que os trata com firmeza, distância e seriedade (excluindo-se o despotismo) do que ao que excede demasiado nas liberdades e busca amizades ou proximidades, desconsiderando seu amor-próprio para o agrado de outrem, culminando com a perda da majestade superior ou imperial.
O arquétipo do leão também é descrito em Crime e Castigo, como o homem invulgar que, por sua ousadia e não por sua razão e clareza de raciocínio, conquista as massas, fato esse observado pelo autor no período de ascensão do socialismo no século XIX.
Ao discorrer quanto à maior importância dada ao povo que aos militares, nota-se a defasagem do autor quanto à importância do poder bélico, depreciada de um modo que seria impraticável aos dias de hoje, talvez pela disparidade tecnológica ou moral com o período de análise do autor.
No século XX, em especial, regimes amplamente ditatoriais, tanto de direita quanto de esquerda, espalharam-se como metástase pelos territórios de países em crises sociais, com a repressão de milhões de cidadãos e apoio nas classes privilegiadas, com especial destaque para a burguesia industrial na América Latina, e para a nomenklatura soviética, além de África e Ásia. Nesses regimes, desconsiderou-se o apoio popular pós-consolidação estatal, com coerção em níveis despóticos, o que incluiu, entre outros, genocídios (sendo notórios os casos de Mao Tsé-Tung na China Popular, Stálin e Pol Pot) e tortura (vulgarmente generalizada).
A letargia da população pode ser explicada, entre outros, pela manipulação ideológica (comumente denominada “pensamento de colônia”), fruto de fraquezas de personalidade oriundos de culturas submissas à mensagem externa de superioridade, nas direitistas, apoiadas pelas potências hegemônicas, utilizando-se de sofisticado aparato, para o que contribuiu sensivelmente o complexo desenvolvimento tecnológico, permitindo, como foi demonstrado, mesmo que de modo caricatural, nas obras de Orwell(1984) e Huxley(Admirável Mundo Novo), um singular controle, pelo Estado, da vida privada, sufocando insurgências em suas raízes e exercendo domínio por pura coercibilidade, além da despersonalização dos indivíduos por, por exemplo, meios de comunicação voltados para a massa, como o rádio (vide Getúlio Vargas) e a televisão (contemporaneidade).
Maquiavel peca pela nulidade das categorias quantitativas, em termos de poder de controle, repressão e manipulação. Ao abordar a coexistência de antagônicos, (como senhores e povo, população e militares), desprezou o fato de que a escolha de uma massa coesa e a criação, mesmo que artificial, de animosidades com outra equivalente, pode implicar, como se presenciou nos totalitarismos de base sectária, como o Nazismo o Fascismo e o Comunismo (em especial nas vertentes leninistas, stalinistas e maoístas), uma base e estabilidade políticas sensivelmente superiores à posição de um mero mediador político, sujeito a levantes de massa, como o caso dos liberais na República de Weimar.
Aparece, também, o erro de generalizar um conceito de massa a todas as populações, desprezando valores particulares, equívoco esse que pode ser atenuado pelo fato de que sua escrita focou a massa italiana, que, pelo óbvio caráter interno, representaria maior homogeneidade quando comparada a fatores externos.
Apesar de sua revolução ao separar a análise política da religião, superando idealismos platônicos e o posterior pensamento agostiniano, erroneamente se classificaria seu pensamento, em especial o pessoal, como imoral ou mesmo semelhante à escola cínica (que ia contra os valores morais da sociedade), pois que, apesar da metodologia política amoral, todas as suas premissas são baseadas em valores éticos típicos do Cristianismo, como a busca da estabilidade e a conseqüente paz, e a justificação da obtenção do poder para a unificação de países e engrandecimento, ofuscando algo que seria colocado, mais tarde, por filosofias ainda mais realistas: a motivação egoísta das atitudes, regra geral entre príncipes e governantes e o imoralismo quando se trata de preceitos cristãos. Propondo tais medidas como necessárias para um suposto bem maior, não como algo natural, Maquiavel declarava expressamente, em cartas pessoais, sua suposta bondade e justiça (também sob o ponto de vista cristão).
Desse modo, apesar da visão deturpada por uma busca de equilíbrio matisseano, origem em irrefletido idealismo estético e desconsiderando aspectos estratégicos e quantitativos para priorizar dicotomias, algumas delas citadas na presente análise, que figuram demasiado simplistas, tendo em vista sua possibilidade de análise de movimentos de massa, como as heresias, em especial a cátara, na Idade Média, o valor de Maquiavel, enquanto revolucionário da Ciência Política é comparado à revolução copernicana no campo da Astronomia, não só pelo estabelecimento de novas bases, mas também pelo desenvolvimento aguçado, mesmo que contemporaneamente obsoleto, de métodos e observações dotadas de maior realidade do que as presenciadas na cultura ocidental até então.

Referências
CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
DOSTOIÉVSKI, Fedor. Memórias da Casa dos Mortos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
DOSTOIÉVSKI, Fedor. Crime e Castigo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.
FREUD, Sigmund. Psicologia de Grupo e Análise do Eu. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1976.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Bertrand Brasil, 1991. cap. IX pp. 55-58, cap. XIX pp. 105-113.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Escala.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

FILOSOFIA DA ARTE E FILOSOFIA MORAL

Curso de Filosofia - Régis Jolivet
LIVRO III
FILOSOFIA PRÁTICA

235 1. Ordem especulativa e ordem prática. — A inteligência, como já notamos várias vezes, comporta uma ordem especulativa e uma ordem prática. A primeira tem por fim o conhecimento das coisas, suas relações e seus princípios. A ordem prática tem por fim direto, não o conhecimento, mas a obra a realizar fora do sujeito cognoscente como tal. O conhecimento ainda intervém aqui, é certo, mas como meio, e não como fim.
2. O fazer e o agir. — A ordem prática é dupla. Ela compreende, com efeito, o domínio do fazer e o do agir. Ou bem se trata de fazer ou produzir uma obra sensível (domínio da arte), ou então, de agir ou conduzir-se conforme às exigências do bem (domínio da moral). Donde se conclui que a filosofia prática se compõe de duas partes distintas: filosofia da arte e filosofia moral.
FILOSOFIA DA ARTE
236 As principais questões que suscita a filosofia da arte (chamada às vezes Estética) dizem respeito à natureza da arte, — à natureza do belo, objeto da arte, — à divisão das belas-artes, — às regras da arte, — às relações da arte com a moral.
ART. I. NATUREZA DA ARTE
1. A arte em geral. — A arte consiste essencialmente na reta noção das coisas a fazer, isto é, ela tem por função determinar que condições a obra a produzir deve preencher para ser conforme à idéia do artífice.
Deste ponto-de-vista muito geral, não se fará distinção essencial entre as artes úteis e as belas-artes, entre o artesão e o artista. Nos dois casos, trata-se de fazer passar uma idéia (idéia de mesa, idéia de relógio, idéia de uma melodia, idéia de um monumento etc) para a matéria, de encarná-la de algum modo. A arte é sempre o que regula esta impressão da idéia numa matéria sensível.
2. Arte e belas-artes. — Há entretanto uma diferença a estabelecer entre as artes úteis e as belas-artes. As primeiras visam essencialmente a um fim útil, sem excluir, entretanto, a beleza, não intervindo esta senão como acréscimo, — as segundas são desinteressadas e não visam senão à produção de uma coisa. Quando falarmos simplesmente da arte daqui por diante, será sempre das belas-artes que se trata.
A arte é uma virtude intelectual. — Se, com efeito, a arte consiste na reta noção da obra a erigir, segue-se daí que ela reside a princípio na inteligência, única a ser capaz de conceber a idéia a realizar na matéria, e os meios de realizá-la.
A arte, além disso, é uma virtude (ou habitus), isto é, uma qualidade permanente, que aperfeiçoa a faculdade visando à ação fácil, rápida e deleitável. E como a arte tem por fim a obra a realizar, diremos que ela é uma virtude prática que tende a tornar fácil e satisfatório o trabalho do artista. Daí se segue que o verdadeiro artista possui uma espécie de infalibilidade nas coisas de sua arte e também uma espontaneidade criadora que parece fazer de sua atividade artística como que a manifestação de uma segunda natureza.
ART. II. A NATUREZA DO BELO
237 As belas-artes têm por fim, como dissemos, a produção do belo. Temos, pois, agora, que perguntar o que é o belo e o que é o sentimento do belo.
§ 1. O BELO
1. Definição. .— Santo Tomás define o belo id quod visum placet, o que agrada ver. Esta definição encerra dois elementos essenciais, que é necessário considerar separadamente.
a) A beleza é objeto de inteligência ou de conhecimento intuitivo, enquanto resulta de condições que não são acessíveis senão à inteligência. Estas condições são: a integridade do objeto, a proporção ou umidade na variedade, enfim, a clareza ou resplendor da inteligibilidade.
É certo também que a beleza sensível é acessível aos sentidos e os põe num estado de bem-estar e de satisfação: o ouvido se encanta com uma bela música, os olhos se comprazem nas belas formas plásticas. Mas isso decorre, por um lado, das condições da arte, que é a encarnação de uma; idéia em uma matéria e, por outro lado, dos sentidos do homem penetrados pela, razão, por causa da unidade do composto humano. A inteligência, com efeito, deve sempre intervir, do contrário não haveria mais percepção propriamente dita da beleza, uma vez que toda percepção da beleza supõe um juízo (implícito), que é obra apenas da inteligência (143).
b) A. beleza é fonte de satisfação (placet). O belo é deleitável; encanta e arrebata; gera o desejo e o amor. A saciedade que pode produzir, às vezes, não vem senão das condições subjetivas de sua percepção. Em si mesmo, o belo é fonte de satisfação constantemente renovada.
2. O mito do belo em si. — Filósofos imbuídos de platonismo quiseram que a beleza não fosse mais do que o quadro de um mundo ideal, a percepção da invisível essência das coisas, a apreensão de Tipos absolutos e imutáveis.
Estas teses são por demais ambiciosas, porque as coisas são, sem dúvida, mais simples. Há beleza desde que uma idéia (ou forma) se ache encarnada, com as proporções devidas, em uma matéria. O artista não é um visionário, nem um místico, nem tampouco um inspirado (no sentido profético da palavra).
É verdade, todavia, como Santo Agostinho o mostrou tão bem, que as belezas finitas que contemplamos nas coisas supõem uma Beleza Infinita (208). Mas o artista não tem os olhos fixados nesta Beleza Infinita que, em si mesma, está além de nossa apreensão, e não é apreensível senão nos seus reflexos que descobrimos nas coisas. É, pois, nas coisas mesmas que o artista procura descobrir a beleza.
3. Teoria da atividade lúdica.
a) A atividade lúdica. Tem-se tentado, também, explicar a beleza e a emoção estética que ela proporciona pelo fato de que. desligada absolutamente de preocupações utilitárias, a arte se reduziria a uma pura atividade lúdica. O belo exprimiria, pois, o que é inteiramente gratuito (característica do jogo), o que estivesse livre da necessidade e de todas as condições exteriores à pura atividade como tal.
b) Apreciação. Esta teoria comporta, seguramente, uma parte de verdade. O belo, com efeito, é gratuito no sentido de çcaé não tem, como tal, um fim útil, Ele se basta a si mesmo, e justifica-se por si mesmo. Sem dúvida, o artista pode estar interessado, mas a obra mesma é essencialmente gratuita, sem outra finalidade senão a de proporcionar a satisfação estética.

Isto não deve, todavia, levar-nos a confundir o jogo e a beleza. a atividade lúdica e a atividade artística. Com efeito, o jogo não visa a produzir uma obra, mas o puro desenvolvimento da atividade. O jogo não é sério; o sério o arruina, como tal. A arte. ao contrário, aparece como coisa grave, e a beleza pede respeito e veneração. Da mesma forma, a produção da beleza pode tornar-se para o artista uma espécie de dever; o jogo não é, entretanto, objeto de nenhuma obrigação.
§ 2. A EMOÇÃO ESTÉTICA
238 A emoção estética é alguma coisa de complexo. Analisando-a, podem-se distinguir os seguintes elementos:
1. A satisfação. — As coisas belas, já o vimos, proporcionam satisfação (id quod visum placet). Diz-se comumente, também, que elas são fonte de prazer. Mas a palavra prazer está demasiadamente sobrecarregada de significação sensível para estar aqui perfeitamente adequada. O termo satisfação tem alguma coisa de mais espiritual (sem excluir, entretanto, o elemento sensível sempre presente no sentimento estético) e convém melhor para definir esta emoção tão particular e suscetível de uma tal intensidade que nasce da percepção da beleza.
Entretanto, pode-se discernir também, na emoção estética, o traço de uma certa tristeza, que provém do sentimento do que há de precário, de frágil, de transitório na beleza finita. Ora, toda beleza comporta uma existência de eternidade, como toda satisfação quereria eternizar-se. Aqui, na emoção estética, é manifesta a impressão de que a beleza sensível está submetida às condições de corrupção e dissolução da matéria em que ela se acha realizada. Assim, tem-se podido falar da "pungente doçura" das coisas belas.
2. A admiração. — As coisas belas provocam a admiração, isto é, o espanto e o respeito. Elas espantam pelo que comportam de perfeição inesperada, de visão original e penetrante, de associações singulares, de combinações audaciosas. Inspiram uma espécie de respeito sagrado, pela revelação que trazem do mundo secreto das formas, e, sobretudo, pela manifestação do poder que exercem sobre a inteligência humana. O homem se sente subjugado pela beleza e reverencia nela uma força espiritual.
Daí se segue que se tenha podido falar de "religião da arte" ou de "religião da beleza" (Ruskin), já que certas belezas produzem efeitos do que é sagrado. Mas isto não é mais do que uma maneira de dizer. A arte não pode ser uma religião, e se a beleza merece nossas homenagens, é como reflexo da Beleza Infinita, princípio de toda beleza finita.
3. A simpatia. — O sentimento estético aparece como eminentemente social. Ele é fator de simpatia ou de gozo em comum Quem quer que goze a beleza aspira a comunicar a outro sua emoção, a compartilhar sua admiração. A beleza consegue realmente fazer vibrar as almas em uníssono, criar uma espécie de unidade espiritual, em virtude justamente de seu caráter gratuito. A beleza, como tal, está além das causas de diversões e de conflitos.
ART. III. AS BELAS-ARTES
239 Considerando o objeto próprio de cada uma das belas-artes, obtém-se a seguinte divisão:
1. O grupo das artes plásticas. — As artes plásticas são as que utilizam as formas sensíveis compactas e sólidas e produzem as obras imóveis. Este grupo compreende:
a) A arquitetura, que atinge à beleza pelo equilíbrio e as proporções agradáveis das massas pesadas que ela utiliza.
b) A escultura, que atinge à beleza pela perfeição com a qual chega a expressar as atitudes e os sentimentos das formas vivas, e particularmente do homem. Ela pode exprimir o movimento (o> Discóbolo), mas fixando-o num de seus momentos.
c) A pintura, que visa a exprimir, pelo jogo de cores, as relações das formas sensíveis entre si. A pintura pode obter, por seus próprios meios, certos efeitos que envolvem a arquitetura ou. a escultura. Ela consegue, em particular, fixar de uma maneira mais suave do que a escultura, e até em suas variações mais úteis, as expressões da face.
2. O grupo das artes de movimento. — As artes deste grupo (música, dança, poesia) produzem obras que são essencialmente móveis, situadas no tempo.
a) A música. A arte musical comporta, como elementos constitutivos, o ritmo, elemento fundamental, resultante da desigualdade dos tempos, — a melodia, que se origina no acento, e surge diretamente da linguagem, espécie de canto, — a harmonia, fundada na simultaneidade de melodias.
A música pode visar a exprimir sentimentos (música expressiva), ou transcrever sensações auditivas (música descritiva ou impressionista). Na verdade, a música não faz, nos dois casos, senão sugerir, e ela implica, por essência, uma transposição.
b) A coreografia. A arte da dança tem qualquer coisa de mista; a dança, com efeito, participa da escultura, pelas atitudes de movimento que põe em jogo, — da arquitetura pelos equilíbrios de grupos, que realiza, — enfim, da música, de que toma o ritmo próprio, dando-lhe uma espécie de tradução plástica.
c) A poesia. O que se chama arte literária é alguma coisa de complexo, que oscila, entre a expressão das idéias abstratas e a poesia, que é uma das belas-artes.
A poesia pode tender, quer, como a música, a exprimir sentimentos, quer, como a pintura, a descrever formas sensíveis. Ela possui seu encanto próprio, devido ao ritmo mais ou menos suave e harmonioso que dirige o desenrolar do discurso verbal e que é, quando não independente do sentido, ao menos outra coisa diferente do sentido das palavras.
ART. IV. AS REGRAS DA ARTE
240 Quando se fala das regras da arte, é necessário distinguir entre as regras que dirigem a concepção da obra de arte e as regras que governam a execução da obra de arte.
§ 1. A CONCEPÇÃO DA OBRA DE ARTE
1. As condições subjetivas. — Não há regras que permitam criar com certeza uma obra-prima, mas há condições a realizar para colocar-se em estado de conceber e produzir a beleza. Estas condições podem, por sua vez, resumir-se na formação ou aperfeiçoamento do habitus operativo de que já falamos acima (236). Um certo dom inato, que consiste acima de tudo nas aptidões, manifesta-se geralmente no artista. Mas a atividade artística requer sempre trabalho, meditação das obras-primas da arte cultivada, o recolhimento, a reflexão paciente, o gosto da perfeição.
2. A imitação da natureza. — A arte é uma imitação da natureza? Será necessário negá-lo resolutamente se, por imitação,quiser-se significar cópia. A arte não é simples cópia dos objetos da natureza (senão a fotografia seria o cúmulo da arte).
Existe, contudo, um sentido em que se pode dizer que a arte imita a natureza, a saber, enquanto visa a produzir a beleza pela manifestação de uma forma numa natureza sensível, Esta forma, o artista não a pode descobrir, senão graças à penetração e à argúcia de sua visão, na natureza exterior ou interior, que é um imenso receptáculo de formas. A arte, mesmo deste ponto-de-vista, é mais uma criação do que uma imitação, porque, aqui, ver é, propriamente, descobrir, inventar e construir.
3. A arte e o ideal. — Uma concepção contrária à da arte imitação da natureza afirma que a arte tem por objeto a manifestação do ideal. Esta concepção está ligada à teoria do belo, que discutimos mais acima (237), e se choca com as mesmas dificuldades.
A fórmula que faz do ideal objeto da arte seria falsa, se este ideal fosse considerado como dentro ou fora da natureza. De fato, o artista é mesmo um caçador de idéias ou de formas, na sua própria natureza, e o ideal que tem em vista é menos uma coisa preexistente à sua procura, um modelo ou um tipo, do que a figura interior da obra a realizar na matéria sensível.
§ 2. A execução
241 1. A prática. — A execução é o domínio da prática e da habilidade manual. O artista deve ser um artesão, quer dizer, um homem de prática. A obra a produzir exige, com efeito, o emprego de utensílios apropriados, cujo manejo é objeto de aprendizagem, conhecimento preciso dos materiais, posse das técnicas operativas. Sem prática, a obra não será mais do que um esboço informe.
2. A arte e a prática. — A prática é necessária ao artista, mas extrínseca à arte. A perfeição da prática não poderá jamais substituir a virtude ou o habitus artístico. É, contudo, a mais séria tentação que ameaça o artista de trabalhar no vazio, quer dizer, de exercer com habilidade suas aptidões técnicas, sem ter uma idéia original e nova a exprimir, como um orador equilibra harmoniosamente seus períodos e multiplica seus gestos expressivos sem ter nada a dizer.
A prática está ao serviço da arte e a ela se subordina inteiramente. A obra de arte perfeita é aquela em que a prática mais sábia chega a não se distinguir da própria idéia e a desaparecer na expressão desta idéia ou desta forma. Assim J. S. Bach nas suas Cantatas, Rafael nas telas das salas do Vaticano, Racine em Athalie. A admiração vai diretamente, então, ao objeto, e o artista, enquanto artesão, se faz esquecer em favor de sua obra.
Art. V. ARTE E MORAL
242 1. A independência da arte. — A arte é, num certo sentido, independente da moral, a saber, enquanto não visa a outro fim senão produzir uma obra bela,
2. A dependência do artista. — Se a arte é independente da moral, o artista não o é nem poderia sê-lo. A obra de arte que produz é uma manifestação da atividade que deve, como toda atividade humana, orientar-se para o fim último universal, que é Deus. Se o artista tomasse por fim último de sua atividade a beleza a produzir, cometeria uma espécie de idolatria.
3. As condições concretas da obra de arte. — A obra de arte encerra condições concretas de tempo e de meio que lhe impõem restrições acidentais e a colocam na dependência acidental da Moral.
Em si, a obra de arte não poderia comportar imoralidade sem sair por isto mesmo do domínio da arte, que é o da serenidade, mesmo na pintura das paixões. Mas a obra de arte pode, acidentalmente, ter efeitos maléficos, desde que seja proposta a homens incapazes, ou, por falta de cultura suficiente, ou, por uma falha de retidão moral, a elevar-se à pura emoção estética. É o que torna o nu perigoso na maioria das vezes, na escultura e na pintura, e o que comunica na poesia, na descrição das paixões de amor, um encanto de caráter tão equívoco.
O artista deve sempre lembrar-se de que a arte não se realiza num mundo de puros espíritos, mas se apresenta a homens em que as paixões más acobertam facilmente as satisfações puras do sentimento estético.

Powered By Blogger