terça-feira, 19 de agosto de 2008

JEAN-PAUL SARTRE

J. M BOCHENSKI - A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA OCIDENTAL
Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Fonte: Ed. Herder.

VI -FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA

18. JEAN-PAUL SARTRE

A. A OBRA E SUAS CARACTERÍSTICAS. JEAN-PAUL SARTRE

(1905- ) tem sido o filósofo europeu mais comentado nos primeiros anos que se seguiram à segunda guerra mundial. A falar verdade, sua fama nos círculos mais amplos, não filosóficos, deve-se principalmente a seus romances e peças de teatro brilhantemente escritos, bem como aos resumos superficiais de sua doutrina (L’existentialisme est un humanisme, 1946). Mas Sartre é, outrossim, o autor de uma série de obras estritamente filosóficas e merece ser considerado como um clássico da filosofia contemporânea, graças principalmente a sua obra capital, livro voluminoso, difícil e muito técnico, L’Être et le Néant, Essai d’ontologie phénoménologique (1943). Comete-se uma injustiça contra Sartre, não vendo nele senão um escritor. Ele é não só um filósofo especializado, com um estilo de pensamento muito preciso, técnico e original, como também de todos os filósofos aquele que mais se abeira da filosofia do ser. Note-se também que, sendo o único filósofo que professa expressamente o existencialismo, não se encontra nele certo caráter poético-romântico tão freqüente neste tipo de filosofia. Pelo contrário, seu sistema é construído com lógica rigorosa, de um modo inteiramente racionalista, quase poderíamos dizer apriorístico. Sem dúvida, Sartre geralmente faz antropologia, mas esta antropologia estriba numa ontologia; consiste quase exclusivamente na aplicação conseqüente de princípios ontolôgicos ao homem e a seus problemas. Com razão podemos ver nesta filosofia uma expressão do desespero do homem de após-guerra, especialmente do francês, e encontrar que ela corresponde à "mundividência de um homem sem fé, sem família, sem amigos e sem finalidade na vida"; é claro também que a influência de Sartre se explica, em larga medida, pelo fato de seu pensamento girar em torno de problemas teológicos, embora em sentido ateu. Apesar de tudo, é inegável que seu sistema filosófico, enquanto tal, assume extraordinária significação e que é simplesmente admirável a acuidade com que Sartre logra captar alguns dos problemas fundamentais da metafísica.

Sartre depende manifestamente de Heidegger. Mas não é ura mero heideggeriano, e o próprio Heidegger declinou, com razão, toda responsabilidade pelo "sartrismo". Sartre, como todos os filósofos da existência, é discípulo de Kierkegaard, mas por vezes dá aos problemas da existência, desenvolvidos pelo pensador religioso dinamarquês, soluções completamente opostas. Parece também haver sido influenciado por Nietzsche, sob vários aspectos. Via de regra, as teorias de Husserl escoram o arcabouço de seu sistema, que as utiliza amplamente. Algumas de suas idéias fundamentais provêm manifestamente de Hegel, como, por exemplo, a tese da oposição do ser e do nada, sem síntese subseqüente, é certo. Mas com seus desenvolvimentos metafísicos Sartre situa-se no plano em que se moviam os velhos filósofos gregos. Seu sistema pode ser interpretado como tentativa de elaborar uma filosofia a um tempo correspondente e oposta ao aristotelismo; muitas de suas teses fundamentais são até parmenídeas, ao passo que certas idéias sobre a liberdade empírica (nas quais não podemos deter-nos) e especialmente sua maneira de compreender a contingência aproximam-se diretamente do tomismo.

B. O em-si.

O sistema existencial de Sartre, segundo todas as aparências, aparta-se muito das idéias "subjetivas", baseadas em experiências pessoais, de Kierkegaard. Apresenta-se como sistema de ontologia, rigorosamente racional, quase apriórico: partindo da análise do ser, aplica com rigor os princípios mais gerais obtidos por essa análise a domínios especiais, entre outros aos problemas antropológicos.

Entre estes princípios destaca-se o repúdio mais radical da teoria aristotélica da potência. Tudo o que é atual (tout est en acte); no ente não há nem pode haver nenhuma possibilidade, nenhuma potência, nenhuma hexis. É, por exemplo, absurdo perguntar o que o gênio de Proust poderia ainda ter produzido, porque seu gênio consiste única e simplesmente no conjunto de suas obras como expressão de sua personalidade e não na possibilidade de escrever uma obra. Do ente só se pode dizer que ele é, que é em si e que é o que é. O ente é: não tem o ser, nem tampouco o recebeu. Não há razão alguma para a existência do ente, que é radicalmente contingente, inexplicável, absurdo. Podem certamente explicar-se as essências, como, por exemplo, se explica um círculo por uma fórmula matemática, mas a existência não poderia explicar-se senão por Deus; mas não há Deus e o próprio conceito de criação é contraditório. Donde se segue que a existência precede a essência do ente. As ervilhas não crescem segundo uma idéia divina, mas são primeiramente. Além disso, o ente é em si; por isso, Sartre o chama o em si; não é ativo nem passivo, nem afirmação nem negação, mas simplesmente repousa em si, maciço e rígido. Enfim, o ente è o que é; qualquer outro ser é aqui absolutamente excluído. O ente não tem relação alguma com os outros entes, está fora da temporalidade. Sem dúvida, Sartre não pode negar o devir do em-si, mas este devir é rigorosamente regido, segundo ele, por causas determinantes, e portanto é mister concebê-lo como um devir rígido, imóvel. Estas declarações apresentam surpreendente semelhança com a ontologia parmenídea, e surge forçosamente a questão de saber como num mundo tão rígido, imóvel e determinista, pode, afinal haver um homem dotado de conhecimento e de liberdade.

C. O para-si.

A resposta a esta pergunta é assim concebida: isso é possível, porque no mundo, além do em-si pleno, rígido, subordinado às leis do em-si, há outro tipo muito diferente de ser: o para-si (le pour-soi), o ser especificamente humano. Mas, como tudo o que é deve ser ente, portanto, ente em-si, conseqüentemente deduz Sartre que este outro tipo de ser não pode ser senão ura não-ser, e consiste, portanto, no nada (le néant). Surge o ser-homem quando o ente se nadifica (se néantise), O nada aqui deve ser tomado literalmente. Explica Sartre que o nada não é: não se pode sequer dizer que ele se nadifica — só o ente pode nadificar-se, e só no ente pode o nada subsistir como "um verme", como um "pequeno lago".

Eis como Sartre demonstra que o homem como tal, ou seja, o para-si, consiste no nada. Em primeiro lugar Sartre, seguindo a Heidegger, assinala que não é a negação que fundamenta o nada, mas que, ao invés, a negação tem um fundamento no objeto, por outras palavras, que há "realidades negativas" (négatités). Assim, por exemplo, quando alguma coisa não funciona em nosso automóvel, podemos ver o carburador, examiná-lo e verificar que ali não há nada (rien). Mas o nada (néant) não pode provir do em-si, porque o em-si, como se disse, é cheio de ser e compacto. Portanto, o nada vem ao mundo por meio do homem. Mas, para ser manancial do nada, o homem deve albergar o nada em si mesmo. E, de fato, a análise do para-si mostra, segundo Sartre, não só que o homem alberga em si o nada, senão que consiste precisamente no nada. Não quer isso dizer que o homem em sua totalidade seja nada-; no homem encontra-se um em-si: seu corpo, seu ego, seus hábitos, etc. Mas o especificamente humano consiste precisamente no nada.

D. Consciência e liberdade.

Assevera Sartre que o para-si é caracterizado por três éc-stases, a saber, por uma tendência ao nada, a outrem e ao ser. O primeiro éc-stase é o da consciência e da liberdade. A consciência, que Sartre analisa primeiramente, não é a consciência reflexiva, mas a que acompanha todo conhecimento: por exemplo, quando conto os cigarros, tenho consciência (não reflexiva) de contá-los. Esta consciência carece de conteúdo, de essência: é mera existência, porque o que parece ser seu conteúdo procede, de fato, do objeto. Ela não é por forma alguma: pois que, se fosse um ente, seria compacta e cheia, não poderia, portanto, converter–se no outro em que se converte no ato de conhecimento: nisto consiste o fenômeno fundamental do conhecimento. Por conseguinte, a consciência é uma decompressão do ser (dé-compression de l’etre), uma espécie de cisão do ente. Também na autoconsciência se torna visível a nadificação: entre aquilo de que somos cônscios e a própria consciência não há mais do que um corte do nada. Até a interrogação, típica do homem, se funda na nadificação, uma vez que, para interrogar, o inter-rogador deve primeiro nadificar o ente (o qual sem esta nadificação não seria interrogável) e, em seguida, a si próprio, a sua certeza; de contrário, tôda e qualquer pergunta seria de antemão destituída de sentido.

O nada do para-si aparece ainda mais claramente na liberdade. Se o homem fosse determinado por seu passado, não poderia escolher; ora, ele escolhe, e isto quer dizer que ele nadifica seu passado. Também aspira necessariamente a alguma coisa que, enquanto tal, não é. Não se deve, portanto, entender a liberdade como propriedade do para-si: identifica-se com ele. Exatamente como em Heidegger, também em Sartre o para-si é um pro-jeto, e neste caso o éc-stase fundamental é o por-vir (a-venir).

Daqui derivam duas teses importantes. Primeiramente, o homem enquanto tal não tem natureza alguma, nem essência determinada; mas sua "essência" é a liberdade, isto é, a incerteza. Em segundo lugar, o Dasein, aqui, não só precede a essência, como no em-si, mas a essência do para si é sua existência. Sartre formula mais energicamente do que ninguém a afirmação fundamental de todos os filósofos da existência.

A liberdade desvela-se na angústia; esta é a tomada de consciência pelo homem de seu próprio ser, que se cria como nada, ou seja, da liberdade. O homem foge da angústia e, procedendo assim, procura escapar não só à sua liberdade, isto é, ao porvir, como também ao seu passado. Pois gostaria de conceber esse passado como um princípio de sua liberdade, apesar de se tratar de um em-si já acabado, imóvel e estranho. Mas o homem não consegue livrar-se da angústia, porque ele é a sua angústia. Por esta forma temos que o primeiro éc-stase do para-si se encontra necessariamente condenado ao fracasso.

E. O ser-para-outrem.

O segundo éc-stase do para-si é um ser-para-outrem. A relação com outrem é essencial ao homem; Sartre professa que não possuímos impulsos sexuais porque temos órgãos sexuais, mas inversamente: possuímos órgãos sexuais porque o homem é essencialmente sexual, isto é, um ser-para-outrem. Não é necessário demonstrar a existência de outrem: é-nos dada imediatamente no fenômeno do pudor. Ao para-si, o outro aparece primeiramente como um olhar (regard). Enquanto não há nenhum outro em nosso horizonte visual, organizamos todas as coisas em volta de nós próprios como centro: elas são nossos objetos. Se porém surge um outro e olha, por seu lado, em volta de si, produz-se uma perturbação: o outro tenta então atrair a seu campo visual não só nossas coisas, mas também a nós mesmos e converter–nos num objeto de seu mundo.

Pelo que, não pode haver mais do que uma relação fundamental entre os "para-si": cada um deles tenta objetivizar o outro. Não se trata, é óbvio, de dominar o outro como um simples objeto, de matá-lo por assim dizer; o para-si quer dominar o outro como liberdade, e portanto possuí-lo, a um tempo, como objeto e como liberdade. Em prolixas e penetrantes análises da vida sexual normal e patológica (às quais Sartre deve,, sem dúvida, boa parte de sua fama entre os não filósofos) empenha-se em mostrar que se trata sempre de tal posse da liberdade alheia: desejamos, não o corpo do outro, menos ainda o nosso próprio prazer, mas sim o outro mesmo.
Um meio para isso é, por exemplo, identificar-se a si mesmo e ao outro, com o corpo, pelas carícias do amor. Tudo isto porém termina sempre e deve necessariamente terminar no fracasso, porque a finalidade é uma absurdidade. Pelo que, o segundo éc-stase do para-si está igualmente condenado a fracassar.

F. Possibilidade, valor e Deus.

No em-si não há possibilidade de espécie alguma; a única fonte do possível é o para-si, porque o possível não é. Também o valor é nada, uma moda lidade do nada; o fundamento de todo valor é a livre eleição do para-si, o qual se escolhe a si mesmo e, com isso, seus valores. Portanto, em moral só existe uma lei fundamental: escolhe-te a ti mesmo. Esta lei é sempre obedecida, porque o homem está condenado a ser livre.

Agora põe-se a questão: no fundo, que busca o homem sempre? em que consiste seu pro-jeto fundamental e sua primeira escolha? A resposta é dada pela psicanálise existencial. Com efeito, ela mostra que o para-si não deseja, em última instância, senão uma coisa: o ser. Sendo por essência niilidade, gostaria de ser. Sem dúvida, não quereria converter-se num em-si; Sartre descreveu em termos muito sugestivos a náusea que invade o homem em presença do aglutinante e do viscoso do em-si, sua angústia ante a ameaça de ser sufocado pelo em-si. O que o homem quer é converter-se num em-si que seja ao mesmo tempo seu próprio fundamento, e, portanto, um ente em-si-para-si. Por outros termos: o homem quer tornar-se Deus. A paixão do homem é, em certo sentido, o inverso da paixão de Cristo: o homem deve morrer para que se converta em Deus. Mas Deus é impossível: um em-si–para-si é uma contradição. Com isto temos que também o terceiro éc-stase do para-si, sua busca do ser, deve fracassar. O homem é uma paixão inútil.

G. Teoria do conhecimento.

Os temas fundamentais da ontologia e da metafísica de Sartre, que deixamos esboçados, são expostos e explicados em análises fenomenológíeas e psicológicas extraordinariamente numerosas (de longe parecem ser o que possui mais valor em todo o sistema). Sartre aplica-as ainda a toda uma série de problemas particulares. Mencione mos aqui o problema do conhecimento, que Sartre discute já parcialmente no princípio de sua obra, se bem que não possa evidentemente resolvê-lo a não ser à base de sua ontologia.

Sartre professa um fenomenismo radical: só existem fenômenos e isso no sentido husserliano.
Por detrás deles não há nenhum númeno kantiano nem substância aristotélica (parece que ambos os conceitos dificilmente podem ser separados). Mas um fenômeno, entre outros, é o fenômeno do ser, uma vez que o ser também é dado. Não há somente, porém, o fenômeno do ser, mas também o ser deste fenômeno. O fenômeno do ser é pois, no sentido de S. Anselmo, "ontológico", quer dizer, apela o ser, é transfenomenal. Os idealistas, que pretendem reduzir o ser ao ser-conhecido, não reparam que, para isso, devem primeiro estabelecer o ser do conhecimento, de contrário tudo desmorona num niilismo radical. Mas o realismo clássico também erra, quando concebe o conhecimento como uma propriedade, uma função do sujeito já existente. Na verdade, tudo o que é é um em-si, e o conhecimento um nada; como dissemos, carece de conteúdo, é uma simples presença do para-si para o em-si enquanto outro. Segue-se que tudo o que está em relação com o conhecimento, portanto, com a verdade, é puramente humano. Humano é também o mundo: o para-si cria-o a partir do ente rígido, maciço. As coisas que aparecem neste mundo são sempre os "instrumentos" de Heideeger. Porque o homem é uma eterna busca do ser e de si próprio, que se opõe a suas possibilidades, e o em-si afigura-se–Ihe necessário como um meio ao serviço de seus projetos,

Pode afirmar-se sem exagero que a história do pensamento filosófico jamais apresentara forma tão extrema de realismo. E não sem razão se disse deste existencialismo — o qual, de acordo com seu nome, deveria explicar a existência humana — que ele é rigorosamente uma meontologia, uma teoria da não–existência. Não é possível apontar senão algumas das conseqüências éticas desta meontologia: a negação de todo valor e lei objetivos, a afirmação do absurdo absoluto da vida humana (também a morte é descartada como seu sentido) e o repúdio de toda justificação da seriedade da vida.

MARTIN HEIDEGGER

J. M BOCHENSKI - A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA OCIDENTAL
Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Fonte: Ed. Herder.


VI -FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA


17. MARTIN HEIDEGGER

A. Origens. Características.

Martin Heidegger (1889- ) foi noviço jesuíta. Estudou em seguida na universidade e doutorou-se com Rickert em Friburgo; mais tarde entrou em relações com Husserl, habilitou-se como professor com uma tese sobre a doutrina das categorias e da significação de Duns Esgoto (1916) e foi coeditor do Jahrbuch für Philosophie und Phänomenologische Forschung. Em 1923, foi nomeado professor em Marburgo, onde, em 1927, publicou sua obra mais importante, a primeira parte de Sein und Zeit (Ser e tempo). Logo após (1928), voltou a Friburgo de Brisgóvia, aonde foi chamado para suceder a Husserl, e aí exerceu sua atividade docente até 1946.

Heidegger é um pensador multo original. A questão de conhecer seus precedentes históricos não se reveste, por agora, de muita importância. Além de Husserl, cujo método adota, teríamos de nomear Dilthey, que nele influiu em diversos aspectos. De-mais-a-mais, sua temática inspira-se fortemente em Kierkegaard. Por outro lado, revela um conhecimento extraordinário dos grandes filósofos do passado, entre os quais amiúde destaca Aristóteles, interpretando-o de maneira muito pessoal. Dedicou a Kant um trabalho que produziu sensação (Kant und das Problem der Metaphysik, 1929).

Poucos pensadores há que sejam tão difíceis de compreender como Heidegger. Esta dificuldade de compreensão não provém de insuficiência da linguagem ou de uma falta de construção lógica. Em todos seus escritos Heidegger procede sempre de maneira rigorosamente sistemática. Mas seu hermetismo provém da terminologia estranha e não habitual que ele criou a fim de poder exprimir suas concepções. Esta é uma das fontes principais de freqüentes interpretações falsas e também uma das razões pelas quais sua filosofia tem sido por vezes posta a ridículo, especialmente por parte dos neopositivistas.

B. Problema e método.

O intuito da obra capital de Heidegger é a elaboração concreta da questão acerca do sentido do ser. Esta questão não só tombara no esquecimento, senão que, graças a uma explicação pretensamente clara e compreensível do ser, nunca havia sido posta nos devidos termos. Não resta dúvida que possuímos uma compreensão vaga e comum do ser, todavia o conceito de ser continua sendo o mais obscuro. Na realidade, o ser não é algo semelhante ao ente (Seiende), mas é aquilo que determina o ente enquanto ente. Se queremos aprofundar a questão do sentido do ser, precisamos de buscar um ente que nos seja acessível tal como é em si mesmo. Mas é óbvio que esta questão não é mais do que um modo de ser dum ente, a saber, o ente que nós próprios somos. Heidegger denomina-o Dasein (existência, literalmente: "ser-aí"). A análise do ente que é existência constitui, portanto, o ponto de partida declarado da investigação. A particularidade do Dasein consiste em que é um ente para o qual em seu ser está em jogo este próprio ser. A compreensão do ser é já uma determinação do ser do Dasein. Por este motivo, o Dasein é "ontológico", ao passo que todos os outros entes são apenas "ônticos". O próprio ser, para com o qual o Dasein se comporta de tal ou tal maneira, chama-se existência. Nunca se pode definir a essência do Dasein enunciando o que ele contém. A essência do Dasein reside na sua existência e explica-se sempre por esta existência. Só o fato de existir deve sempre fazer compreender a questão da existência: esta compreensão é denominada "existenciária" (existentiell). Pelo contrário, o conjunto da estrutura da existência chama-se "existencialidade" e a análise desta é a "compreensão existencial" (existentiales Verstehen).
Consiste numa explicação dos caracteres ontológicos do Dasein, que (contrariamente aos caracteres ontológicos do ente que não é Dasein: as categorias) se chamam os "existenciais". A análise existencial é uma ontologia fundamental. Constitui a base de toda ontologia e de todas as ciências. Seu único método possível é o método fenomenológico. "Fenômeno" aqui é tudo o que se-mostra-em-si-mesmo (das Sich-an-ihm-selbst-zcigende). Portanto, os fenômenos não são aparências ou aparições no sentido vulgar do termo. A terminação "logia", em fenomenologia, procede de λεγειν, que tem aqui a significação de "tirar o ente de sua obscuridade". Porque há muitos fenômenos que ou não foram ainda postos a descoberto, ou ainda estão cobertos de entulho. Portanto, a fenomenologia é aqui uma hermenêutica (Dilthey). Aplica-se à existência, a fim de lhe interpretar a estrutura. Por conseguinte, a filosofia é uma ontologia fenomenológica universal, que arranca da hermenêutica do Dasein, a qual, como análise da existência, fixou o termo do fio condutor de todas as questões filosóficas no ponto onde surge e aonde retorna.

Mas Heidegger não foi além da análise do Dasein que devia servir de fundamento a uma ontologia universal. A segunda metade de Seini und Zeit ainda não veio a lume (1).

(1) Na Carta sobre o humanismo e noutros ensaios recentes de Heidegger expressam-se algumas idéias que parece indicarem uma viragem no seu pensamento. Mas, como esta última fase de sua filosofia é mais insinuada do que exposta em suas últimas obras, prescindimos dela aqui.

C. O ser-no-mundo. (Das in-der-welt-sein).

O Dasein caracteriza-se pelo fato de que existe, de que é sempre o meu (Jemeinigkeit), isto é, porque não pode ser exemplar de uma espécie e, finalmente, porque se comporta de maneira diferente relativamente a seu próprio ser. O fundamento deste modo de ser é o ser-no-mundo. Este ser-em não é uma relação de ser de dois entes extensos no espaço, nem tampouco a relação entre sujeito e objeto. Tem antes a maneira de ser que é a preocupação, quando se trata de entes brutos ou de entes que não têm Dasein, e a maneira de ser que é a solicitude quando se refere a outros existentes. O mundo compõe-se não de coisas, mas de instrumentos, que são, por essência, "alguma coisa para…". O modo de ser do instrumento chama-se amanualidade (Zuhandenheit, o estar à mão). O instrumento (das Zuhandene) está sempre em relação com outros instrumentos, Cada instrumento remete-nos a outro instrumento, bem como àquele que manipula e utiliza o instrumento. O caráter de ser do instrumento é o seu estado (Bewandtnis); este refere-se, em última instância, a um para-quê (Wozu), o qual é uma vontade-para-quê (Worum-Willen), isto é, ao Dasein. Portanto, o Dasein é a condição da possibilidade de revelabilidade do instrumento. Cada instrumento tem seu lugar, quer dizer, é colocado nele, exibido, etc. O lugar possível de um instrumento é a proximidade (Gegend). Há no Dasein uma tendência essencial para a proximidade, isto é, para uma distância (= aproximação) do instrumento. As distâncias objetivas não coincidem com oafastamento e a proximidade do instrumento: a "preocupação" é que decide da proximidade e da distância. Donde se infere que o mundo é uma determinação ontológica do Dasein: ele é unicamente no modo de existir do Dasein.

Todas- as velhas ontologias cometeram o erro de confundir o instrumento, o que está à mão (Zuhandenes), com alguma coisa simplesmente presente (Vorhandenes); este erro é notório particularmente em Descartes (res extensa). Na realidade, o estar-à-mão (Zuhandenheit) nunca se fundamenta unicamente na presença (Vorhandenheit), mas, ao invés, o presente é sempre um "somente presente" (nur Vorhandenes); portanto, um modo defectivo do instrumento, daquilo que está-a-mão.

Com o instrumento de trabalho são dados outros Dasein: o mundo do Dasein é um co-mundo (Mitwelt). Seu ser-em é uma existência-com (Mítdasein), e o Dasein é, por essência, ser-com-outros (Mitsein). Se o modo de comportamento do Dasein relativamente aos instrumentos é a preocupação, relativamente a outros Dasein é a solicitude, que pode encarregar-se do que deve procurar para os outros, ou ajudá-los a ser livres em seu cuidado. A simpatia (Einfühlung) só -possível à base do ser-em-comum.

D. A facticidade e o cuidado.

O Dasein não só está no mundo, senão que é essencialmente constituído pelo ser-no–mundo: é precisamente seu ser-aí, em que se decompõe a palavra alemã Dasein (existência): da, aí, e sein, ser. O Dasein é este aí iluminado por si mesmo, ou seja, sua abertura, seu caráter aberto (Erschlossenheit). Esta abertura não se identifica com o conhecimento, mas é um "existencial" que fundamenta o conhecimento. A este modo de ser correspondem três elementos:

1. o sentimento da situação original (Befindlichkeit, literalmente: o sentimento abrupto de se encontrar-aí) é um sentimento, um estado de alma pelo qual o Dasein se revela como existente e se mostra a "facticidade", o fato de ser do Dasein. Este "fato de ser" chama-se abandono (Geworfenheit), condição de o Dasein haver sido jogado e abandonado no mundo para existir. Note-se que a facticidade não é um simples encontrar-se, senão um caráter ontológico do Dasein.

2. A compreensão (Verstehen) deve ser aqui tomada no sentido em que se diz: "poder estar perante uma coisa": na compreensão ou interpretação reside a maneira de ser do Dasein como poder-ser. O Dasein nunca é alguma coisa dada de uma vez para sempre, mas é aquilo que ele pode ser: uma possibilidade projetada. A compreensão possui uma estrutura que Heidegger chama "projeto" (Entiwurf): a captação ontológica existenciária do âmbito do poder-ser. É uma maneira de ser do Dasein, na qual este é sua possibilidade. A apercepção (Ausbildung) do Dasein como interpretante chama-se "explicitação" (Auslegung): não é necessariamente uma expressão (Aussage).

3. A discursividade (Rede) ê o fundamento da linguagem, não a própria linguagem. É a articulação significativa da inteligibilidade do ser-no-mundo, O homem é ζωον λóγον εχον, um ser que fala. A discursividade é concebida com tanta amplitude que abarca também como possibilidades o ouvir e o calar.

Podemos captar a estrutura global do "aí", apoiando-nos no fenômeno da angústia. A angústia difere do medo, em que, na angústia, a ameaça não se encontra em parte alguma. A fonte da angústia é o mundo como tal; e aquilo que nos angustia é a nossa possibilidade-de-ser-no-mundo. Assim a angústia mostra o Dasein, enquanto existindo facticamente em seu ser-no-mundo. Mas este ser transcende-se sempre a si mesmo. Como estrutura do Dasein temos, portanto, a de ser-por-antecipação-no-mundo, como ser ante os entes que lhe saem ao encontro.

Isto não é outra coisa senão o cuidado (Sorge). Tudo o que o Dasein faz, deseja, conhece, etc, preocupação, solicitude, teoria, prática, querer, desejar, impulsão e inclinação, não são mais do que manifestações do cuidado. O cuidado é o ser do Dasein (do "ser-aí").

E. O "se" e o ser-para-a-morte.

Esta análise é incompleta, porque o Dasein, enquanto existe, nunca chega a alcançar sua totalidade; há em sua essência um inacabamento constante. Só a morte representa o fim do Dasein. Mas com a morte o Dasein não mais pode ser apreendido como ente, e nunca temos uma experiência autêntica da morte de outrem. Contudo, na morte o Dasein nunca se perfaz nem simplesmente desaparece: o fim que a morte significa quer dizer que o Dasein é um ser que termina. A morte é uma possibilidade de ser, a possibilidade mais pessoal, mais sem par, mais irrepetível. O próprio ser do Dasein é ser-para-a–morte. O Dasein, desde que é, assume esta maneira de ser.

Esta é justamente a fonte da angústia do Dasein. Busca refúgio no mundo. Por temor de ser ele mesmo, por medo de se defrontar com a angústia, o Dasein refugia-se no impessoal "Se" (Das Man). O "se" é um existencial, um modo de ser, é o ser inautêntico do Dasein, no qual este se sujeita a um elemento neutro que impõe seu ponto de vista e sua maneira de agir. Este "se" não é uma pessoa em concreto nem todos os homens em conjunto. Seus traços característicos consistem em que procura a mediocridade e possui tendência para o nivelamento. Descarrega o Dasein de toda decisão e responsabilidade próprias: age-"se" e fala-"se" desta ou daquela maneira. O "se" seduz, tranqüiliza, aliena. Manifesta-se no palavrório, no qual o diz-"se" passa por ser a verdadeira realidade do discurso, na curiosidade versátil, na distração e agitação contínuas, enfim no equívoco: já não se consegue distinguir entre o que se sabe e o que se ignora.

Estes três fatores caracterizam o ser da quotidianidade, a existência quotidiana, qualificada de queda do Dasein. O Dasein desprendeu-se de si mesmo e tombou no mundo.
A angústia da morte faz que o Dasein caia neste ser inautêntico, quotidiano, num ser que é a não-verdade fáctica. Porque o "se" não permite pensar na morte própria, e só fala da morte na forma impessoal de "morre-se".

F. Consciência e resolução.

Retirar-se do "se" é uma opção, um decidir-se em favor de um poder-ser por parte do mais autêntico eu. O testemunho deste poder-ser é a consciência. A consciência (Gewissen) é um modo da discursividade, um apelo que faz que o Dasein cesse de escutar o "se" e seu palavrório. Não é possível explicar a consciência por uma função biológica nem ver nela a voz de uma potência estranha (Deus): quem chama é o cuidado, o Dasein, que, jogado no seu abandono, se angustia pelo seu poder-ser. A voz da consciência nada diz que pudesse ser "falado"; é no modo inquietante do silêncio que ela mostra a culpa. Não se trata aqui de um estado de culpabilidade no sentido vulgar, senão daquilo que a fundamenta: culpa é ser fundamento de uma niilidade (Nichtigkeit). O estado de culpabilidade não resulta, portanto, de uma falta, mas ao invés; porque o nada pertence ao sentido existenciário do abandono (Geworfenheit) e o projeto não é só determinado pela niilidade do fundamento, mas é também essencialmente negativo. O estado de culpabilidade pertence pois ao ser do Dasein e significa: fundamento nulo de sua niilidade.

A escolha, que o "querer-ter-consciência" constitui, é uma disposição para a angústia, que se perfaz no silêncio. Ao autoprojetar-se, assumido no silêncio e na angústia, para esta culpabilidade genuína, dá Heidegger o nome de resolução (Ent-schlossenheit). Constitui a lealdade do Dasein a si mesmo; é a liberdade para a morte. Liberta o Dasein do "se", mas não de seu mundo. Pelo contrário: ela dá aos outros que existem conosco a possibilidade de ser em seu poder-ser mais autêntico. Só a resolução desvela a situação, ou seja, o "aí" {Da) que nela cada vez se patenteia.
Graças à resolução, o homem aceita corajoso seu destino e desempenha decididamente seu papel no mundo.

G. Temporalidade e história.

Partindo da "resolução", é possível solucionar o problema da unidade do Dasein. Esta não se fundamenta no eu. Na realidade, é o "se" quem com maior freqüência e alvoroço diz eu-eu, porque, no fundo, ele não é o eu autêntico. A tradição e Kant não lograram superar este ponto de vista do "se". Uma análise do eu mostra que com o eu se exprime o cuidado. O "mesmo" (Selbst) é pois a base sempre presente do cuidado, e a autonomia do eu não significa outra coisa senão a resolução que se antecipa. Ora, a resolução que se antecipa é o ser para o poder-ser mais autêntico e característico (para a morte). Mas isto só é possível se o Dasein puder volver sobre si, isto é, agüentar. O agüentador deixar-vir-sôbre-si a mais autêntica possibilidade é o porvir. Por outro lado, o abandono só é possível, porque o Dasein por vir pode ser seu "ter sido", ser tal qual foi: o Dasein só pode volver a si na medida em que pode retroceder para si. Finalmente, o ser resolvido na situação só é possível se o ente se fizer presente. Retrocedendo para si, tendo em vista o porvir, a resolução torna-se presente na situação. Isto como fenômeno unitário chama-se temporalidade. A temporalidade é o sentido do cuidado e, portanto, o sentido da existência. Ê essencialmente "extática", a exterioridade original (ursprüngliche Ausser-sich). O futuro, o passado e o presente são êxtases (Ekstasen, ec-stases) da temporalidade, sendo o futuro o elemento primário. Mas, visto que o Dasein é ser-para-a-morte, o futuro autêntico revela-se como finito. O tempo primordial é finito.

Todos os existenciais podem e devem ser explicados pela temporalidade que os torna possíveis. Mas o Dasein não existe como soma das realidades momentâneas, não preenche uma vida traçada de antemão, mas "estende-se" de maneira que desde o início seu ser próprio se constitui como um estender-se. Tanto o "término" como o "ente" são unicamente, enquanto o Dasein existe. A mobilidade específica do ser que se estende é denominada por Heidegger o acontecimento (Geschehen) do Dasein e a descoberta da estrutura do acontecimento significa compreensão da historicidade (Geschichtlichkeit). Pelo que, só o Dasein é primariamente histórico, mas secundariamente também o são o intramundano e o mundo, que só é na medida em que o Dasein se temporaliza.

À base desta análise desenvolve-se uma teoria do tempo e criticam-se as teorias anteriores, especialmente as de Aristóteles e de Hegel.

H. A transcendência e o nada.

Heidegger não fêz mais do que esboçar os temas básicos de sua metafísica, que é muito difícil de interpretar corretamente. Limitar-nos-emos aqui a dar um resumo muito sumário.

A relação do Dasein com existentes brutos comporta uma transcendência dupla. Por um lado, o Dasein é jogado no mundo, e é regido pelo ente: o mundo transcende o Dasein. Mas, por outro lado, o Dasein é essencialmente "construtor de mundo", transcende o mundo, ultrapassa o existente, no sentido de que extrai este existente de seu ocultamente fundamental e lhe dá o ser, isto é, o sentido, a verdade. Sem Dasein não há ser, embora haja ente. Ora, este ultrapassamento (Ucberstieg) parece justamente constituir a "ipseidade" (Selbstheit) do Dasein: o Dasein devêm na medida em que transcende o ente. A essência (Wesen) do Dasein é o transcender.

O Dasein tem ainda uma terceira transcendência: a transcendência do nada. O nada não é só uma categoria lógica, mas também primariamente uma categoria ontológica: não é a negação que funda o nada, mas o nada (ôntico) que funda a negação. A relação entre o Dasein e o nada é a seguinte: primeiramente, o Dasein carece de fundo, procede de um abismo sem fundo, do nada; em segundo lugar, seu fim é a morte, outro abismo do nada; em terceiro lugar, o próprio ser do Dasein é uma corrida para a morte, para o nada: o Dasein é, em si mesmo, nada. Por outro lado, o ser de cada ente que não é Dasein é tirado do nada. Podemos dizer em geral: ex nihilo omne ens qua ens fit. Heidegger deveria propriamente dizer: "o nada existe"; mas para evitar esta fórmula contraditória diz que "o nada nadifica", — expressão que muitos ridicularizaram, entre outros os neo-positivistas.

A questão agora é: que deve significar o "nada"? A resposta é a seguinte: como o ente bruto (= o ente que não é Dasein) sai do nada graças ao Dasein, e como este devir consiste em que o Dasein lhe confere inteligibilidade (verdade) e como, por outro lado, para Heidegger, segundo vimos, só o ser, e não o ente, provém do Dasein, talvez seja possível interpretar o pensamento do filósofo no sentido de que se deva entender o nada como um existente bruto sem ser, um caos absolutamente ininteligível. O Dasein é para ele o "lumen naturale", que confere ao ente estrutura e sentido. Se esta interpretação é justa, poderíamos interpretar a filosofia de Heidegger no sentido de um imanentismo radical, no qual todo sentido depende do Dasein; mas o próprio Heidegger repudiou energicamente esta interpretação geralmente admitida. Como quer que seja, sua filosofia não deve ser interpretada num sentido subjetivista. Heidegger ensina expressamente que o mundo se encontra na origem da subjetividade e da objetividade.

Com estas idéias se prende a doutrina heideggeriana da liberdade, O Dasein constitui-se a si próprio como pro-jeto (Ent-wurf) na transcendência: a transcendência é a própria liberdade. Poderíamos dizer igualmente que o Dasein é liberdade. E como todo sentido, portanto, todo fundamento, provém do Dasein, resulta que a liberdade é o fundamento último de toda inteligibilidade: a liberdade é o fundamento do fundamento, parece ser a última palavra da filosofia de Heidegger.

CARACTERES GERAIS DA FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA.

J. M BOCHENSKI - A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA OCIDENTAL
Tradução de Antônio Pinto de Carvalho. Fonte: Ed. Herder.

VI -FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA

"Olhou em torno de si: não viu senão a si mesmo. Começou a gritar; Sou eu!…
Começou a inquietar-se; porque quando se está só começa-se a ter medo".

Brihadaranyaka Upanishad

16. CARACTERES GERAIS DA FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA.
A. O QUE A FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA NÃO É.
A filosofia da existência passou a ser de moda em vários países, depois da Segunda Guerra Mundial. L’Être et le Néant, a obra tão difícil de Sartre, que supõe profundos conhecimentos da história da filosofia e cujas análises são a tal ponto técnicas e abstratas que geralmente só são acessíveis a filósofos especializados e bem formados, está novamente esgotada, apesar de suas oito edições sucessivas e do número correspondente de exemplares publicados — umas dúzias de milhar. Sem dúvida, os filósofos existencialistas franceses — especialmente Sartre — vieram ao encontro do público com seus romances e peças de teatro. Mas esta popularidade acarretou consigo certos equívocos a propósito do existencialismo filosófico, equívocos que importa começar por dissipar. Por isso, diremos imediatamente, e de uma vez por todas, o que o existencialismo filosófico não é.

É certo que o existencialismo se ocupa de problemas do homem, hoje chamados "existenciais", tais como o sentido da "ida, da morte, da dor, etc, mas o existencialismo não consiste em desenvolver tais problemas, que têm sido discutidos em quase todas as épocas. Seria erro palmar qualificar de existencialistas S. Agostinho ou Pascal ou certos escritores modernos, como o crítico espanhol Miguel de Unamuno (1864–1937), o grande romancista russo Fjedor M. Dostoievski (1821-1881) ou o poeta alemão Rainer Maria Rilke (1875-1926). Estes escritores e poetas, sem dúvida, debateram e trataram em suas obras de maneira particularmente impressionante diversos problemas humanos, mas nem por isso são filósofos da existência.

Outro erro consiste em chamar existencialistas aos filósofos que estudaram a existência no sentido clássico do vocábulo ou o ser existente. Não faz sentido que muitos tomistas pretendam fazer de S. Tomás de Aquino um existencialista. Não menos grotesco é o equívoco de incorporar Husserl na filosofia da existência, pelo fato de haver exercido grande influência sobre ela; sucede que Husserl colocou entre parêntesis precisamente a existência.

Por último, importa não identificar a filosofia da existência com uma única doutrina existencialista, por exemplo a de Sartre, dado que, como a seguir veremos, há diferenças essenciais entre as diferentes direções.

Em face de todos estes equívocos, tenha-se como ponto assente que a filosofia da existência é uma tendência filosófica que só tomou forma pela primeira vez em nossa época e, ao sumo, remonta a Kierkegaard, tendência que se desenvolveu em direções entre si divergentes, e das quais só o denominador comum pode ser denominado a filosofia da existência.

B. Seus representantes.

Afigura-se-nos ser mais conveniente, no quadro desta exposição, agrupar primeiro os filósofos que podem considerar-se como pertencentes à escola e, em seguida, procurar tirar a limpo aquilo que lhes é comum. São pelo menos quatro os filósofos da atualidade que sem contestação podem ser considerados "existencialistas": Gabriel Marcel, Karl Jaspers, Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre. Todos eles apelam para Kierkegaard, o qual, apesar de muito distanciado no tempo, é geralmente tido como um existencialista hoje muito influente. Afora estes quatro pensadores eminentes, não se encontram muitos outros filósofos da existência propriamente ditos, embora o existencialismo interesse a muitos filósofos e exerça influência sobre eles. Poderíamos citar, entre outros, a colaboradora de Sartre, Simone de Beauvoir, e sobretudo Maurice Merleau-Ponty, um dos pensadores mais eminentes da filosofia francesa atual. Também podem ser aqui mencionados dois pensadores russos, Nicolai Berdiaev (1874-1948) e Leo Chestov (1866-1938), que se tornaram conhecidos por suas obras escritas em francês. Mencionemos ainda o célebre pensador protestante Karl Barth (1886- ), fortemente influenciado por Kierkegaard. Mas comete equívoco quem conta entre os existencialistas a L. Lavelle, que é manifestamente um filósofo do ser. Em nossa exposição circunscrevemo-nos aos quatro primeiros pensadores mencionados; simplesmente, exporemos muito sumariamente a doutrina de G. Marcel, porque sua principal obra filosófica até este momento ainda não veio a lume e de seus restantes escritos é impossível obter uma visão de conjunto do seu pensamento. Como datas principais do existencialismo podem ser fixadas as seguintes: em 1855 morre Kierkegaard; em 1919 publica Karl Jaspers sua Psychologie der Weltanschaungen (Psicologia das mundividências); em 1927 aparecem o Journal métaphysique de Gabriel Marcel e Sein und Zeit de Heidegger; em 1932 vem a público a Philosophie de Jaspers, e em 1913 L’Être et le Néant de Jean-Paul Sartre. Importa ainda assinalar que nos países latinos, especialmente em França e Itália, o existencialismo só alcançou importância nos últimos tempos, ao passo que na Alemanha já exercia sua maior influência por alturas de 1930.

C. As origens.

Já assinalamos a grande importância das obras de Sören Kierkegaard (1813-1855) para o existencialismo. Durante a vida, o filósofo protestante dinamarquês exerceu apenas influência mínima e sua redescoberta do século XX deve-se à relação íntima que une seu pensamento trágico e subjetivo ao espírito de nosso tempo. Marcel desenvolveu suas idéias, afins das de Kierkegaard, num momento em que nem sequer conhecia ainda as obras do dinamarquês. Kierkegaard não construiu um sistema propriamente dito. Investe energicamente contra a filosofia hegeliana por causa de sua "publicidade" e objetividade e nega a possibilidade da conciliação, isto é, a possibilidade de abolir a oposição entre a tese e a antítese numa síntese racional e organizada. Afirma a prioridade da existência sobre a essência e parece ter sido o primeiro que deu à palavra "existência" um sentido existencialista. É antiintelectualista radical: segundo ele, não é possível chegar até Deus pela via intelectual, a fé cristã está repleta de contradições e qualquer tentativa de racionalizá-la representa uma blasfêmia, Kierkegaard une a sua teoria da angústia à teoria da solidão total do homem em face de Deus e do caráter trágico do destino humano. Vê no "instante" uma síntese de tempo e de eternidade.

A par de Kierkegaard, Husserl, com sua fenomenologia, tornou-se muito importante para o existencialismo. Heidegger, Marcel e Sartre aplicam constantemente o método fenomenológico, apesar de não aceitarem as teses nem sequer a posição fundamental de Husserl. De fato, Husserl, que exclui de suas investigações a existência, mantém-se inteiramente à margem do existencialismo.

Também a filosofia da vida influiu fortemente no existencialismo e podemos até asseverar que este a prolongou, desenvolvendo principalmente seu atualismo, suas análises do tempo, sua crítica do racionalismo e freqüentemente até das ciências da natureza. Bergson, Dilthey e principalmente, segundo parece, Nietzsche, podem ser considerados como predecessores do existencialismo.

Enfim, a nova metafísica repercutiu muito fortemente na filosofia da existência. Todos os existencialistas levantam o problema tipicamente metafísico do ser, e alguns deles, como Heidegger, salientam-se por seu profundo conhecimento dos grandes metafísicos da Antigüidade e da Idade Média. No esforço que envidam para chegar ao ser em si, os existencialistas procuram também, via de regra, superar o idealismo. Contudo, alguns dentre eles, nomeadamente Jaspers, são ainda fortemente influenciados pelo idealismo.

Vemos pois que o existencialismo arranca das duas grandes correntes espirituais que provocaram a ruptura com o século XIX, e é, além disso, influenciado por um outro movimento típico do pensamento contemporâneo, a saber, a metafísica.

D. Traços comuns:

a) O traço comum fundamental das diversas filosofias da existência de nossa época reside em que elas procedem todas de uma denominada vivência "existencial", difícil de definir mais de perto e que varia de filósofo para filósofo. Assim, em Jaspers ela parece consistir numa percepção da fragilidade do ser, em Heidegger na experiência da "marcha para a morte", em Sartre numa repugnância ou náusea geral. Os existencialistas não ocultam por forma alguma que a filosofia deles parte de uma vivência desta espécie.
Isso explica que a filosofia existencial apresente em seu conjunto — até mesmo em Heidegger — o cunho de experiência pessoal.

b) O objeto principal da investigação é, para os existencialistas, aquilo que se chama "existência". Mas é difícil determinar o sentido que eles atribuem a este vocábulo. Em todo caso, trata-se da maneira de ser peculiarmente humana. O homem (raramente assim denominado, mas preferentemente designado por "Dasein", "existência", "eu", "ser-para-si") é o único ser que possui a existência. Com maior rigor de expressão, ele não a possui, ele é sua existência. Se tem uma essência, esta essência é sua existência ou resulta de sua existência.

c) A existência é concebida de maneira absolutamente atualista. Ela nunca é, mas cria-se a si mesma em liberdade, devêm. É um esboço, um projeto. A cada instante, ela é mais (e menos) do que é. Os existencialistas reforçam ainda freqüentemente esta tese, afirmando que a existência coincide com a temporalidade.

d) A diferença entre este atualismo e o da filosofia da vida consiste em que os existencialistas consideram o homem como mera subjetividade e não como manifestação de outra corrente vital mais vasta (cósmica), como, por exemplo, sucede com Bergson. Além disso, a subjetividade é, entendida em sentido criador: o homem cria-se livremente a si mesmo, ele é sua liberdade.

e) Não obstante, seria inexato concluir que, para os existencialistas, o homem se encontra fechado em si mesmo. Pelo contrário, enquanto realidade imperfeita e aberta, ele parece estar, por essência, muito Intimamente ligado ao mundo e em particular aos outros homens. Todos os representantes do existencialismo admitem esta dupla dependência, de modo que, por um lado, a existência humana parece estar inserta no mundo, e por isso o homem tem sempre uma situação determinada; mais ainda, é sua situação, e, por outro lado, há um vínculo particular entre os homens; vínculo que, do mesmo modo que a situação, constitui o ser próprio da existência. Este é o sentido da "co-existência" (Mitdaseín) de Heidegger, da "comunicação" (Kommunikation) de Jaspers e do "tu" (toi) de Marcel.

f) Todos os existencialistas rejeitam a distinção entre sujeito e objeto e depreciam assim o conhecimento intelectual no domínio da filosofia. Segundo eles, o verdadeiro conhecimento não se adquire pela inteligência, mas é mister que a realidade seja vivida. Esta vivência dá-se principalmente mediante a angústia, pela qual o homem se torna cônscio de sua finitude e da fragilidade de sua posição no mundo, no qual foi jogado, destinado à morte (Heidegger).

A par destes traços fundamentais comuns ao existencialismo, aos quais poderíamos ainda acrescentar outros, existem igualmente profundas diferenças entre seus representantes tomados isoladamente. Assim, por exemplo, tanto Marcel como Kierkegaard são decididamente teístas, ao passo que Jaspers admite uma transcendência, que não sabemos se deve ser entendida como teísmo, panteísmo ou ateísmo, todos os três igualmente rejeitados por Jaspers.

A filosofia de Heidegger parece ser ateia; no entanto, segundo a declaração expressa, sem dúvida, de alcance limitado, do autor, não o seria. Por último, Sartre tenta elaborar um ateísmo franco e conseqüente.

Diferem igualmente muito entre si o fim e o método das várias filosofias da existência. Heidegger pretende brindar–nos com uma ontologia em sentido aristotélico e aplica um método rigoroso, como o faz Sartre, inspirando-se nele. Jaspers rejeita toda ontologia no domínio da demonstração da existência, mas também faz metafísica e emprega um método menos exigente.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Faltam professores de filosofia e sociologia, diz diretor da Capes

27/07/2008 - 17h45
da Agência Brasilda Folha Online

O diretor de educação básica do Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior), Dilvo Ristoff, diz temer que a ausência de professores capacitados para lecionar filosofia e sociologia inviabilize o cumprimento da lei sancionada em junho passado que prevê a inclusão das duas disciplinas no currículo de escolas de ensino médio do país.
De acordo com um estudo feito pela Capes, o Brasil tem, atualmente, 31.118 profissionais atuando como professores de filosofia, sendo que, desse total, apenas 23% têm formação específica. Na sociologia, são 20.339 professores atuantes, sendo 2.499 licenciados (12%).
"Agora teremos que incluir a filosofia e a sociologia no nosso plano emergencial. Estamos, inclusive, revendo os planos orçamentários para 2009. Vamos ter que chamar todas aquelas pessoas que têm uma formação correlata como história, ciência política e a sociologia pura, sem a licenciatura, para atender a lei", diz o diretor.
Ristoff estima que o número de professores de filosofia e sociologia formados por ano deve aumentar 20 vezes, para atender a demanda. No total, serão necessários 107.680 docentes de cada disciplina e, atualmente, formam-se, por ano, 2.884 docentes de filosofia e 3.018 de sociologia.
"Se a gente levar em conta que 50% dos que se formam tendem a exercer outras profissões, a gente chega ao dramático número de 40 vezes mais graduados por ano."
Pela lei, a filosofia e a sociologia deverão passar a integrar os currículos dos três anos do ensino médio em escolas das redes pública e particular --são 24.131 estabelecimentos de ensino médio, no total.

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